A SALA DOS PASSOS PERDIDOS

A SALA DOS PASSOS PERDIDOS

Esta aconteceu na sala dos passos perdidos do Hospital Estadual Getúlio Vargas. Sala dos passos perdidos é uma expressão utilizada pela maçonaria, mas que foi copiada do parlamento inglês, onde havia uma antecâmara na qual o cidadão esperava ser atendido e aguardava pelas decisões dos despachos relativos a assuntos de seu interesse, às vezes recebendo más notícias. Normalmente a ansiedade fazia com que os peticionários ficassem andando sem destino, de um lado para o outro, preocupados ou ansiosos. Daí qualificação de passos perdidos. Eram passos que não levavam a lugar nenhum

Ali, no Hospital Getúlio Vargas, para quebrar a tensão, e de pura brincadeira, batizamos com este nome um corredor que ficava estrategicamente localizado entre as três salas de atendimento de emergência do Hospital: a das crianças, a dos homens e a das mulheres, tendo ao fundo a sala de repouso, onde os pacientes ficavam às vezes dias aguardando vaga nas enfermarias, nos andares superiores , pois a emergências ficava localizada no andar térreo. Era ali a nossa sala dos passos perdidos, onde às vezes aguardávamos pelo inesperado, durante o plantão de emergência, no qual tudo pode acontecer a qualquer momento. E o fazíamos num papo animado e descontraído, para aliviar a tensão e estarmos prontos para qualquer acontecimento.

Certa vez, durante um desses tensos intervalos na nossa sala dos passos perdidos, estávamos eu e um grupo de especialistas jogando conversa fora, num, papo animado e descontraído, para relaxar um pouco, quando de repente um homem destacou-se daquele mundo de gente que circulava no Getúlio Vargas. Aparentava ter algo em torno dos 35 anos de idade, lúcido, tranquilo, orientando-se com marcha neurológica atípica, e dirigiu-se decidido a nosso grupo:

— Bom dia! Qual dos senhores é o Dr Paulo Roberto Silveira, o neurocirurgião da equipe?

Mais que depressa me apresentei!

— Sou eu, meu senhor — apresentei-me. E com uma pontinha de vaidade perguntei:

— O senhor, por acaso, é algum paciente que eu operei?

— Não senhor doutor — retrucou o bom homem — eu sou aquele paciente cujo caso, apesar de grave, e de os médicos das outras equipes insistirem que era de operação , o senhor afirmou, resoluto, que não era cirúrgico. Que seria resolvido com o tratamento medicamentoso adequado, que o senhor mesmo me prescreveria!

Eu me lembrava dele. Havia sido objeto de uma polêmica, na qual fiquei em minoria, justamente por ter a certeza de que ele não precisava e nem deveria ser operado. Mas ganhei a discussão e agora ele parecia ser a prova viva de que eu estava certo. Mas era preciso me certificar daquilo antes.

— Sim, meu senhor, eu me lembro! E como o senhor está?

— Estou ótimo! Segui certinho o tratamento que o senhor me recomendou, tomei todos os remédios que o senhor receitou e fiquei bom. Vim aqui só para o senhor ver que tinha razão, que estou curado! Vim para agradecê-lo, Doutor! Muito obrigado, e que Deus conserve a sua competência, inteligência e dedicação aos pacientes!

Dito isto, ele apertou bem forte a minha mão, sacudindo-a efusivamente, e foi embora.

Ficou aquele silêncio quase sepulcral na sala dos passos perdidos, quebrado apenas pelo burburinho cotidiano do Hospital. Interrompi aquela calmaria simulando impertinência, e num gesto caricatamente presunçoso, poli as unhas na roupa, o olhar “perdido no infinito”, e mandei essa:

— É... quem sabe das coisas se antecipa aos problemas...

Ficaram todos me olhando sem saber como me dar um troco. Mas um deles resolveu rapidamente o problema:

— Só podia mesmo ser um doente que o Paulão não operou! Todo mundo que ele opera ou morre, ou fica troncho ou maluco...

Mentira. Pura implicância. E olhem que ali na sala dos passos perdidos eram todos meus amigos, hein...