Só a saída da Lua

(Inspirada de uma história contada a mim por Sandro Pinheiro, competente técnico da Emater de Curralinho.)
Belém, 25 de janeiro de 2015.


Afonso e Zeca Santiago, genro e sogro, conversavam em cima da tolda do barco de nome Dorinha, em homenagem à neta que dormia tranquila na redinha verde atada. Naquelas horas, das três da tarde, dobravam e dobravam os furos de Melgaço, dirigidos pelas esposas Bia e Maria, hábeis comandantes destas modestas naus. O tempo fechou. Zeca Santiago, mais experiente alertou, “Bora se aprumá que vem ela aí...”. “Que nada!, isso aí é só a saída da Lua. Passa logo...”, apontou Afonso o bico da boca em direção ao céu, acinzentado. Desceram para se abrigarem.


Os pingos começaram timidamente como quem esperava molhar algum besta. Enquanto isso, na cidade Melgacense, Dona Célia levantara mal-humorada da soneca da tarde pra tirar a roupa do varal, calcinhas e cuecas do cabo de vassoura enfileiradas, toalhas e calças da cerca, camisas e vestidos o qual recebia honradamente a cordinha, que só aceitava essas peças. Sandro do mototáxi limpava a viseira do seu capacete ainda em movimento levando na garupa o velhinho Totonho para pegar o navio Custódio que vinha de Portel e que o levaria para a consulta médica em Belém. Trataria da trombose que adquirira no pé direito. Avelar deslizava no rabeta em meio à baía de Melgaço com as duas rasas no porãozinho da pequena embarcação. Mestre Gil soprava sua flauta a escolher a melhor nota na composição que fazia. Queria fazer uma música em homenagem àquela chuvinha fina, na sua memória a molhar o cabelão da namorada antiga que a muito sumira. Sônia e Amaro discutiam na praça da cidade o desgastado relacionamento e o futuro dos três filhos que tinham. Uma paca gorda estava na mira do Bira, ali, ali a oito metros de sua cartucheira.


De pingados tímidos, deu-se um estrondo Bumm!! Todos ao mesmo tempo olharam para cima e cada um tentou se proteger à sua maneira. Na Dorinha, tamparam a janela dos lados e da frente, ajeitando o vidro para impedir a passagem da chuva para dentro. Na moradia de Célia, fechou-se a janela, atravessando o pedaço de pau por entre os encaixes que ajudava a deixar seu lar mais segura aos ladrões. Sandro concentrou o olhar agora embaçado pro caminho de terra disforme que ligava o centro ao porto da cidade, cercado de mata baixa de um lado e outro, intercalado pelos casebres pobres levantados de cima da várzea; seu Totonho, com a testa na costa do motoqueiro, pensava no medo da grande capital e segurava por cima do bolso o maço de dinheiro enrolado por um papel que lhe avisava o endereço que deveria visitar em solo belenense. Avelar começou a sentir as ondas ganharem força e balançar seu rabetinha, cada vez mais, cada vez mais. Mestre Gil viu que a toada que levava não combinava mais com aquela chuva mais forte. Arremedou um maestro com sua flauta, imaginando-a baqueta e pescando a ideia, tocou em tons mais arrojados. Seu sopro já se confundia com a fala da natureza se apresentando e apesar de estar bem molhado, decidiu permanecer no imitar daquela torrente. Sônia gritou tentando alcançar o nível de som do trovão para que Amaro soubesse de seu desespero pedinte que ele largasse a bebida e a sacanagem. O barulho dos céus assustou a paca gorda antes que Bira acertasse o meio dos olhos da bicha em sua mira de experiente caçador, não queria magoar a carne dela pro assado que já esperava ter, salivando seus sentidos.


A chuva começou a pegar volume, com gotas maiores que já doíam nas costas dos passantes sem camisa ou nos rostos descobertos. Zeca Santiago sugeriu que Afonso prestasse a atenção redobrada no leme, daqui a pouco teria dificuldade de enxergar as coisas por conta da chuvarada que crescia a cada minuto. Afonso reclamou do sogro em pensamento, até parecia que ele não conhecia as chuvas! Na primeira trovoada, a bebezinha não esboçou reação, mas no segundo gritante vindo das nuvens deu um chorinho fino, afinal, nunca lhe tinham brigado antes. Até que veio o estalo Táaa!! No interior do barco fez-se clarão e as mulheres gritaram de susto. Aí vem o acompanhante, o trovão-capitão que fez tremer a todos lá num segurar de mãos e rezas. Táaa! E Dona Célia agarrou-se ao filho Michel de seis anos, só os dois viviam ali a abraçarem-se desde que se conheceram neste mundo. O menino perguntou o que era aquilo e a mãe respondeu que era Deus a ralhar com os homens por serem tão injustos. O menino riu, aí veio o trovão. Escondeu-se debaixo dos lençóis de Célia, tremendo e jurando ser obediente. A jovem senhora teve dó do menino e juntinhos naquele leito de colchão fininho a doer nas costelas, olhavam para o teto de brasilit que forrava a casinha, constatando por entre as frestas a água cair e os raios atacarem. Sandro não conseguiu ver mais nada pela frente, agravada a situação pela moto ter dificuldades de trafegar naquela lama já preparada pelo inverno. As lagoas se formavam em sua frente, arredando-os Sandro e Totonho para o meio da rua, até escorregarem e caírem na várzea verdadeira que acompanhava a via; Totonho tirou do bolso o maço e botou dentro do saco plástico que sempre trazia na boroca, pois mais humilhado seria neste mundo se apresentasse aos comerciantes seu dinheiro molhado. A dor normal da perna do velhinho inchada pela trombose aumentara muito com o ir e vir da moto, somada à queda. Sandro tirou o capacete e levantou o senhor até fazê-lo segurar em galho de árvore que por ali ficava. Não sabia se ia ou se voltava com aquele idoso. Vendo o caminho percorrido, percebeu a mesma condição de estrada. Largou a moto escondida ali atrás de um miritizeiro dos porrudos e voltou para Totonho. Carregou-o nos braços e iniciou o retorno para o centro da cidade, pois o navio esperado com certeza teria passado rumo a Belém. Maestro Gil invocava as ondas com suas notas, sendo os graves para ondas que levantavam, agudos para ventanias que lhe subiam o colarinho, compassos de quem parecia entender o que se passava, fincados os pés mais firmes para não ser expulso dali. Avelar desesperado viu as ondas ganharem altura. Tchá! Tchá! Em sua montaria seguia com o braço erguido para proteger os olhos, vai que vai por entre uma onda. Espera. Vai por entre outra onda. Pára. Aproveita aquela outra brecha da ondinha. Mas a vista não ajudava, o vento lhe assustava, naquele sopro nos ouvidos para intimidar sua corrida. Tudo escurecido. Amaro puxou pelo braço de Sônia a esclarecer que não se meteu com mulher nenhuma e que sua vida era ela, aproximados entre si pelo medonho vendaval, agora sim tempestade que ali se fizera de mágoas dela. Tentava se livrar aparentemente de Amaro, mas disfarçava a vontade de sair com ele pela ventania afora. Nele diminuía o efeito do álcool, cuja lavagem nas roupas e na pele chegava até a sua alma tomada pela subserviência dos falsos amigos que lhe ofertavam o absinto desmedido. Bira e a paca gorda não se enxergavam mais, um procurando o outro para matar e para fugir, e se toparam bruscamente, desembestando os dois a correr, quando escorregaram pelo barranco abaixo, com raízes expostas batendo-lhes, sujando suas caras ao final no barro de muitas folhas espinhentas por ali, patinando, patinando, velocidade bem menor nesta perseguição e fuga, cai um, cai outro. Bira joga o sapato nela, mas erra a paca, arisca que sai de lado.


O céu ficou um breu. Nunca se viu tamanha tarde de quatro horas tanta escuridão. Tanta chuva. Tanta brabeza vinda do alto. Brumm!!! Ventania! Trovão! Raio!! Afonso virou a embarcação até a batida na terra. E lá encalharam. O genro ainda mexeu o corpo pra ir tirar o barco, mas Zeca Santiago pegou-o pelo ombro e pediu que deixasse quieto. Dorinha chorava, chorava. Bia balançava a nenê fazendo chiii—chiii pra acalmá-la, a avó rezava ave-marias de canto de boca no balançar do barco mesmo parado na terra, com a proa enfiada no barranco, naquela barulheira, com a aquela água vazando pela janela e escorrendo no fardo de farinha que tentava esgueira-se na frente do motor. Célia velozmente levantou sua televisão da mesinha de sucupira, para protegê-la em cima do guarda-roupa de madeira branca, que dias mais tarde apodreceria as bases. A água implacável entrou pela soleira da porta e pelo teto mal coberto molhando a cama. Caíam gotas malvadas no fogãozinho de duas bocas, na geladeira velha de porta não fixa, esta como motivo de maior precaução para Célia, que juntamente com o filho, colocavam tijolos para evitar que a água chegasse ao motor. Michel e a mãe ali naquela peleja, pequenos músculos a salvar suas humildes posses. Sandro e Totonho judiados pelo frio, o senhor tremendo nos braços do mototaxista a pedir entre os lábios a salvação. Não viam nada pela frente dos narizes. Uma luz foi vista pelo dois a três metros, Sandro tropeçava no ajeitar do corpo para saber o que era. Um jovem se aproximou e disse que viessem junto com ele. Entraram em uma das casas que ali ficavam no meio daquele nada. Sandro e Totonho sentaram no canto da sala, frientos que não conseguiam nem mesmo falar. O jovem ofereceu toalhas e ainda buscando aquecer-se, sentiram o doce e fumegante café colocado em um prato, com bolachas de água e sal, depositadas sobre um banquinho de madeira aparentemente feito à mão. Tão saborosa a bebida, tão acolhedora, que esqueceram um pouco de todo o sofrimento de quase duas horas de caminhada em lama e escorregões. Totonho tossia, tossia e lhe veio um lambedor de mel de abelha nativa, andiroba e copaíba. Após a toalha, veio um grande lençol feito de rede velha, porém, grossa para aquecê-los juntamente. Olhavam para o jovem que não quietava na sala, ia para a cozinha, entrava no quarto e voltava, sem poder dar chance para ser visto seu rosto. Mestre Gil estava esgotado, de joelhos, queria manter as notas em bom tom, no modo contínuo, tocando a chuva. A Tempestade admirava sua persistência e coragem. “Vai, Gil, continua...”, dizia a si mesmo, com o peito esfriado pela água. Numa onda imensa, Avelar teve a rabeta virada, a rasa foi para a baía, sorte sua já se encontrar perto da beira, iniciou as braçadas de sua vida para alcançar a vareta que segurava as cordas de matapi naquela visão repentina oferecida pelo raio. Nadou, nadou e chegou à vara. Fez esforço para mediar seu peso à vareta e não arrancá-la com as ondas hostis que queriam entrar no seu fôlego. Em outro raio, viu outra meta, uma ucuúba caída lá na frente. Saiu a nado, nada, sofre, pensa que vai morrer até bater com a mão no galho projetado para tentar pegar seus dedos, esticando-os. A ucuubeira o acolhe. Abraça-a, chorando em agradecimento. As ondas castigavam os dois, homem e árvore. Os prantos de Amaro se juntaram aos de Sônia no arrependimento que tinha de que a vida seria recomeçada se sobrevivessem àquele afogamento dos destinos seus. Sônia perguntou se tudo seria diferente. Tudo seria, tudo seria, prometia o marido. A tempestade batia em Amaro, pressionava sua nuca, que naquele instante só via a confusão na íris de Sônia. Ali observou o espelho de toda a sua conduta violenta, indiferente, irresponsável, da necessidade passada pelas suas crianças por seu constante estado etílico. A paca gorda pulava de tronqueira em tronqueira, logo seguida por Bira, de pulo em pulo. A roedora lembrou-se do buraco de surucucu ali por perto, que certamente a protegeria de seu caçador, porém, quando descobriu o refúgio, viu na verdade toda a região inundada, com a cobrona parceira da paca lá longe boiando em mururés que seguiam para o rumo da baía de Melgaço. Quando observava a cena, não percebeu Bira dando o bote, quase a esmagando com sua corpulência de homem gordo, embaraçados agora a guerrearem em si de unhadas, dentadas, murros, apertos, até os dois rolarem exaustos em cima de um assacuzeiro imenso boiando no igarapé em que margeavam. Desmaiaram com a chuva torrencial que quase os afogou, prostrados assim ficaram sob o tronco.


E aguaceiro! Chuva! Raio! Maresia! Ventania! Barco encalhado balançando! Dorinha chorando! Balde! Balde! Célia pelejando! Velho Totonho e Sandro cobertos! Esquenta! Esquenta! Mestre Gil tocando! Flauta tomada pela água! Avelar abraçando! Sônia escrotiando! Amaro se arrependendo! Bira respirando! Paca gorda ofegando! E aguaceiro! Chuva! Raio! Maresia! Ventania! Chuva! Chuva! Chuva!


Foi quando misteriosamente tudo foi parando depois de oito horas de batalha. A chuva se tornou cândida. O raio e o trovão foram desafiar o pessoal das bandas do Anapu léguas dali. E céu foi-se abrindo, até descortinar um céu estrelado e uma lua radiante abençoando os sobreviventes. De um luar tão forte que era possível dormir na sua sombra.


Bira acordou em cima do tronco do assacuzeiro, pegou sua lanterna de lado e focou na paca que não era mais gorda. Tinha parido filhotes naquele alívio de perseguição. Fitou a expressão da paca gorda cúmplice de sua noite e mantida na coragem de defender-se. Viu que o tronco estava prestes a atracar no aturiá ali por perto e caiu na água, já em altura de caminhar até à terra, deixando sua caça por hoje liberta para construir novas rotas de fuga, para si mesma e para as pacazinhas.


Sônia e Amaro seguiam de mãos dadas na ruazinha enlameada, mas para ela a melhor das passarelas. Riam e faziam cócegas entre si. Quando abriram a porta de sua residência, três pequeninos correram para lhes fazer festa. Não tinham dormindo ainda. Nesta noite dormiram bem tarde pelas brincadeiras que os pais fizeram até o sono chegar. Amaro chegou até a conversar com os meninos como estavam na escola, quem tinha namorada, o que iam ser quando crescerem. Sóbrio.


Mestre Gil bateu com a flauta na perna direita para retirar as últimas gotas de água de sua flauta. Chegou à sua vivenda, pegou um caderno gasto e uma caneta quase sem tinta para começar a esboçar a música que tinha feito. Chama-se Canto da Chuvarada Sem Fim.
Sandro deixou velho Totonho a pé em sua morada, cujos parentes mostraram-se indiferentes ao sumiço por oito horas do ancião. Indignou-se. No outro dia, Totonho surpreendeu-se do pé livre da trombose, aliás, estava quem nem perna de moleque arteiro. Jogou o maço de dinheiro na mesa que levaria para Belém. Alegre, resolveu visitar o jovem que os recebera tão bem, quando viu Sandro ali sentado no meio da rua de lama a se perguntar. Não tinham encontrado nem o jovem, nem a casa. Acharam a moto em bom estado de conservação. Na volta, pediram-lhe uma corrida. Mais uma corrida. Mais uma corrida. Todos agora o procuravam, sem ele saber o motivo. De uma moto, comprou outra e mais outra. Orgulhoso, Totonho espalhava que Sandro era um bom homem e afilhado dele.


Célia e Michel terminaram de passar pano no assoalho do casebre, mais agradável agora depois de tanta água. Naquela noite ainda, Michel prometeu à Lua que sua mãe teria uma casa digna quando crescesse. A Lua tinha segurança que o menino conseguiria aquilo.


Avelar, exausto dormiu na casa de um conhecido por ali, depois de uma hora de pernada no escuro. No dia seguinte levou o amigo para ver onde tinha se salvado e surpreendeu-se com a ucuubeira ali deitada na água, presa só pela raiz a estender seus galhos como se quisesse oferecer um abraço. Não achou a posição esticada da noite anterior que lhe rendeu o socorro. O amigo não acreditou. Tornou hábito seu passar de rabeta por ali, com a ucuubeira sempre lhe parecendo enviar-lhe um aceno de mão. Ele muito agradecido, respondia sempre. Antes da árvore despencar de vez na baía, pegou seus frutinhos e plantou no seu terreno. Nasceram arvoretas serelepes que pareciam bater palminhas quando o sol estava radiante e ficar encolhidinhas quando chovia.


Na Dorinha, calados, Afonso e Zeca Santiago livraram finalmente o barquinho do encalhe. O bebê dormia profundamente na rede junto com Bia. Com a água serena, Maria assumiu o leme. Na tolda do barco, Zeca mascava um pedaço de cana e Afonso analisava o firmamento.

“Acho que vai chover de novo amanhã”, sentenciou Afonso e quis prosseguir “mas acho...”.

Foi interrompido pelo sogro.

“Se tu disser que é só a saída da Lua de novo, te dou uma rimpada com essa cana!!”.





(Imagem: Quadro Tempestade no Furo de Breves/ Paul Marcoy)