639-OS LOROTEIROS - Contadores de Causos

Era um grupo que não negava fogo e marcava presença todas as tardes no Bar do Amadeu. O proprietário era um dos melhores em contar lorotas: aumentar no tamanho dos peixes pescados, intensificar as dificuldades de uma caçada ou melhorar cada vez mais as histórias e causos que eram contados ali, à beira do balcão, entre talagadas boa cachaça e tragadas de cigarros de palha.

Pedrim Mentira era o mais experiente em caçadas e tinha histórias de tocaias de onça que fizera em Goiás e Mato Grosso. Zeca Baleia, magro que nem goteira de chuva rala, era o mestre das pescarias. Entre as prosopopéias dos dois mais falantes ficavam Neném de dona Chiquita, Zé Rapadura, Lourenço Bento (que gostava mais de causos de fantasma e assombração), Raimundim Gangorra, e Juca Nossa Senhora, campeão de “histórias inventadas”, mesmo sendo carola e freqüente às confissões com Padre Damião. Jamais admitia que suas lorotas fosse mentiras das boas.

<><><>

Naquela tarde de julho, o frio enregelando os ossos e uma névoa descendo sobre a rua sem calçamento, Zé Rapadura, sentado num tamborete , com a perna esquerda encolhida e fuçando o dedão do pé com o canivete, olhou pra fora do bar, e contou:

“Essa nebrina ta me lembrando uma casião que nois tava lá pelas bandas do Rio Espraiado, caçando codorna. A manhã tava fria e nóis decidimo sair pra caçar assim mesmo. Pois a nebrina era tão forte, que a gente num via um parmo na frente do nariz. Foi preciso o Lilico ir na frente, abrindo o nevoeiro com as mãos, e ligava a lanterna, para a gente poder caminhar. Ele enfiava as mãos assim, prá lá e prá cá, e ia cavando um túnel no meio do nevoeiro, prá gente conseguir passar.”

<><><>

Em outra ocasião, quando passou algumas rezes tocada por um boiadeiro, rumo ao matadouro municipal, o Raimundim contou o seguinte causo:

“Meu avô tinha uma fazenda no norte de Minas, com tanto gado, mais tanto gado, que quando os compradô vão lá comprá, ele vende o gado por minuto.

“Por minuto?”, estranha o Pedrim Mentira. “Como é que era isso?”

“La era assim: meu avô e o comprador ficava os dois sentados num banco em cima da porteira. Quando a porteira era aberta, o gado começava a passar. Eles não contava quantas vacas ia passando. O comprado então via a quantidade que queria comprá e então mandava fechar a porteira quando achava que tava bão pra ele. Aí ele verificava quantos minutos tinha passado de gado, e pagava de acordo com o tempo”.

<><><>

O Zeca Baleia nem esperou os comentários dos outros loroteiros, para aproveitar o avô do Raimundim. E começou a contar:

“Por falar em avô, na fazenda do meu avô tinha um relógio de pendulo, daqueles que fica balançando prá lá e prá cá, e de quinze em quinze minutos bate um tanto de badaladas. Era um relógio muito antigo, mais antigo mesmo, velho que ninguém sabia de onde tinha vindo, parece que veio das Europa. Pois o relógio tava lá, pendurado na parede, onde batia o sol de manhã, desde bem cedinho até na vorta do dia. Pois ceis numa acredita que a sombra do pêndulo, passando prá lá e prá cá, naqueles anos todos, fez um buraco na parede onde tava dipindurado?”

Assim, todo mundo acreditando nos causos uns dos outros, ninguém se abismava com nada. Só deixavam o bar quando o Amadeu, aí pelas oito horas, cismava que era hora de fechar as portas, pois ”não gostava de pinguço que vem beber cachaça aqui de noite, só dá amolação.”

Então a turma se dispersava.

= ‘Tarde cumpade!’

= ‘Tarde . Inté amanhã, si Deus quiser’.

= ‘Intão, inté’.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 25 de novembro de 2010

Conto # 639 da SÉRIE 1OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/01/2015
Reeditado em 28/01/2015
Código do texto: T5116984
Classificação de conteúdo: seguro