AS TRAQUINAGENS DE PAPAI
Se tinha uma coisa que era levado a sério na minha infância, era a religião. Só para os jovens leitores terem uma ideia, durante a semana santa, só se podia executar as atividades básicas, pois as demais eram consideradas sacrilégio.
Na semana santa mamãe não deixava nós brincar, tinha que manter o respeito pela dor de Cristo, não podia, por exemplo, brincar, dançar e nem comer carne, a não ser, peixe. Tudo era proibido.
Vivíamos em um sítio longe da sede uns 25 quilômetros, e era tradição, na sexta-feira santa, o cinema local passar filmes da paixão de Cristo. Eram várias sessões para atender a demanda da população do município que convergia para cidade exclusivamente para esse fim. Lá em casa não era diferente, geralmente ia papai e os mais velhos e nós crianças ficávamos com mamãe, até por que, a viagem era feita na carroceria do caminhão de um dos vizinhos, aliás, o único da região na época.
Em uma dessas semanas santas, papai estava meio adoentado e o processo se inverteu, mamãe acompanhou os mais velhos e papai ficou com nós, não sem antes fazer algumas recomendações.
— “Gerardo”, era assim que ela chamava papai, você vai ficar bem com as crianças?
— Claro que vou ficar bem, pode deixar que cuido delas, vai sossegada.
— Tem peixe salgado aí, prepara para as crianças, mais cuidado com os espinhos.
— Deixa comigo, com o almoço e o jantar eu me viro...
E assim foi feito. Quando todos se foram, isso por volta de umas nove horas, papai chamou nós e falou:
— Crianças, papai não aguenta mais comer peixe, é peixe todo dia, a semana inteira. Vamos fazer alguma coisa diferente?
— Vamos, respondemos todos admirados, afinal, papai não pedia opinião pra ninguém, muito menos para nós crianças.
— Que tal um franguinho de panela com palmito?
— O pai ta doido! Falou o nego, que era o mais crescidinho de nós. Hoje é sexta-feira santa.
—É pecado matar frango, papai, falou a Vilma.
— Pecado é, mas depois nós rezamos e pedimos perdão à Deus, só não pode é contar pra mãe.
Concordamos na hora, afinal, além da traquinagem, íamos se esbaldar de comer carne, até por que, em casa quando se matava um frango, era dividido um pedaço para cada um, criteriosamente. Quanto maior o filho e mais trabalhava, maior era o pedaço, assim, cada um lá de casa já sabia seu pedaço: Papai era o peito, Tião e Elza o “baticacho”, Dé e Chico, a “coxa chata”, Paulo o “sobre” e assim por diante, até chegar em nós, que era uma asinha ou um “encontrim”.
O Nêgo ficou encarregado de pegar o frango, um carijó que estava cotado para ser a próxima vítima da mamãe, a Vilma de colocar água pra ferver e eu, o menorzinho, saí com papai para buscar um palmito de macaúba, que no sítio tinha bastante.
Nunca tínhamos visto o papai cozinhar, quem comandava o fogão era sempre a mamãe, mas confesso, o frango estava de “lamber o beiço”, como dizia papai, podem tomar o porre, não pode sobrar nada. Fizemos a maior festa. Papai liberou geral, além de comer, brincamos a vontade, o dia inteiro.
No outro dia, sábado de aleluia de manhazinha, enquanto papai sapecava um capado, mamãe pegou uma espiga de milho e foi pro terreiro pegar um frango pro almoço. Logo que a galinhada se reuniram para comer o milho, ela notou a falta do carijó e resmungou alguma coisa com papai que gritou de lá:
— Dever ter sido a raposa, ontem os cachorros acuaram uma aí na moita de bambu.
— Tem que dar um jeito nessas raposas, tão comendo nossos frangos e a danada ainda escolheu o mais gordo, justamente o que eu ia preparar hoje.
Mas, como sempre fazia, continuou sua rotina, pegava um frango, apalpava o peito para ver se estava gordo, se não tivesse soltava e pegava outro até encontrar o ideal para o abate. Enquanto isso, papai piscava pra nós numa total cumplicidade.