OS CAÇADORES DE PIPAS

Não é de hoje que uma das diversões preferidas da garotada, é soltar papagaios (pipas para alguns).

No meu tempo, finalzinho dos anos 60, essa atividade não representava tanto risco, pois eram raríssimas as motocicletas existentes e as ruas da periferia não eram pavimentadas. Isso impedia que se desenvolvessem maiores velocidades. Além disso as pessoas não transitavam aleatoriamente de um lado para o outro, como ocorre hoje em dia. A movimentação tinha horário certo: no início do dia, bem cedinho, e no final da tarde, após as 16 horas.

Os automóveis, assim como as motocicletas, eram raros e tinham dificuldades em transitar pelas vias em terra batida, ou inacessíveis.

Na rua em que eu morava e no bairro tinha uns moleques maiores que reivindicavam para si o título de “O melhor soltador de papagaios do bairro”. Dentre eles figuravam o: rato, o Bilau, o Zé Maria, o Kika (meu irmão) o Boa Ventura, o Rei, o Ostinha e vários outros. Esses, como todo ídolo, tinham sempre aqueles que gostavam de ficar por perto, para ajudar a aprumar o papagaio, enrolar a linha e dar linha, quando o seu líder solicitasse.

O Bilau, esse sim, a especialidade dele era soltar pipa, que tem um formato diferenciado do papagaio e que, por ser mais pesada, requeria uma linha mais forte que as linhas dos demais .

Todos eles eram especialistas em “tosar”, ou “cortar” os outros, ou seja, realizar manobras com os seus papagaios ou pipas, debicando, puxando e dando linha, conforme a necessidade demandasse, visando romper as linhas dos oponentes, com a fricção do cerol de suas linhas nas linhas dos outros.

Como soltar papagaio no momento em que algum desses também o estivesse fazendo eram favas contadas, eu não me atrevia a lançar ao ar o meu papagaio. Preferia ficar esperando que a linha do papagaio de alguém fosse tosada.

Normalmente os papagaios e pipas dos “lideres” eram os melhores, feitos com mais capricho e mais bonitos e todos queriam pegá-los quando tinham suas linhas tosadas e exibi-los como troféus.

No momento em que um era tosado correria era geral. Corríamos descalços ladeira acima, ladeira abaixo, cada um por si. Era um salve-se quem puder. Não tinha carro, moto, ônibus, muros, cercas, telhados, árvores, nada que impedisse o ímpeto de nós, “os caçadores de pipas”, de conseguirmos o nosso intento. Invadíamos as residências e enfrentávamos e xingávamos os proprietários e inquilinos, como se estivéssemos cobertos de razão.

Era tenso o momento em que o papagaio se aproximava do solo, porque aquele instante é que definiria quem ia ficar com o “troféu”. Qualquer vacilo e ele ia parar nas mãos de outro oponente.

Existiam algumas leis tácitas e normalmente quando um pegava sozinho o papagaio, os outros tinham que respeitar.

Se várias mãos alcançavam o papagaio ou pipa simultaneamente, aí as únicas coisas que restavam, para frustração geral, eram as taquaras e às vezes nem isso. Nesse caso havia um sentimento revolta mútua entre os pretendentes, o que desencadeava constantes pancadarias.

Enquanto uns corriam atrás dos papagaios ou pipas, outros lançavam berimbaus para pegar a linha do que foi tosado. Jogavam berimbaus, puxavam a linha e faziam a festa. Pelo menos até o prejudicado chegar e começar o maior quebra-pau. Aliás, naquele tempo, tudo era motivo para quebrar o pau, principalmente se o desafeto era de outra rua.

Rafael Arcângelo
Enviado por Rafael Arcângelo em 13/01/2015
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