O Canavial

Reconhecia bem o brilho do suor ao sair do canavial em altos sóis de temperaturas inigualáveis. Acima dos sessenta graus? É pouco para quem roça um matagal cheio de canas roliças e doces. E se fustigar com a foice ou qualquer objeto cortante parece que o mato se desvencilha e corre amuado, desmaia ali mesmo aos pés de quem o açoita.

Saia com a roupa maltrapilha mas que encobria as partes do seu corpo. Um corpo que permanecia intacto diante de um calor mumificado. Não fosse o tempo o aparato de tanta lida. O rosto com as rugas fazendo vínculos como canais irrigadores de lágrimas, os músculos mantinham até o porte de um esportista nato, mas a pele estriada denunciava a labuta do dia-a-dia.

Quando chegava à soleira da porta de sua casa, desmaiava por ali mesmo junto a filharada que o rodeava nuns carinhos de dar gosto. Eram beijos e abraços. Eram passadas de mãos pelos seus cabelos grisalhos e duros da poeira. Era a gratificação pelo ardor de quem precisava manter a pulso firme toda a família. E Tininha, a esposa que também fazia a sua renda durante as horas de todos os dias não se fazia de rogada e o acarinhava como quem só quer dar o seu dengo - receber de seu amor, também era carícia de poesia - e dizia sorridente: - 'me sopra no ouvido o seu cansaço que te dou o meu peito de abrigo' . Amarildo depois de receber todo o conforto da sua prole e o encantamento de sua Tininha, ia para o ninho de amor e fazia como quem se é etéreo.

Amor com amor se propaga, se alastra e até cai bem. O canavial retalhava cada parte do corpo de Amarildo. E Tininha o talhava bem mansa ao seu meio. Os cortes em suas mãos pelo capim-navalha o incomodavam, e Tininha, assim como Lázaro na sua candura lambia cada parte de sua ferida. Tudo era difícil e muito cansativo, mas com os mimos da filharada e os denguinhos de Tininha tornava-se até melífluo...

E no dia seguinte tudo era repetido: canavial e sol a pino, pés e mãos maltratadas, roçado desmaiado pelo facão com pouco corte e dor pela imensidão de tanto porte de canas embaralhadas. Mas uma certeza se fazia: Amarildo era amado e também amava. Os filhos preparavam sempre uma merendinha surpresa. A desse dia foi um pãozinho com manteiga salpicado com bastante açúcar e para molhar a goela, um bom suco de seriguela. E Tininha mais uma vez surgia na sua calada e deitada de poesia: 'Deixei um beijo em cima do seu travesseiro, não saia sem me despertar para acolhê-lo no meu singelo zelo'

Kathmandu
Enviado por Kathmandu em 12/01/2015
Reeditado em 12/01/2015
Código do texto: T5098988
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