615-O SEGREDO DO COMENDADOR

CONTINUAÇÃO DO CONTO

#614--A FERROVIA ou APROVEITANDO A MARÉ

—A estrada de ferro nunca passará pela fazenda Solidão!

As palavras ecoaram pelo salão do clube onde estavam reunidos o prefeito, os ricaços da cidade e os fazendeiros da região que seria cortada pelos trilhos da estrada de ferro em construção.

— Mas, comendador, a ferrovia... — começou o prefeito, no que foi imediatamente interrompido pelo vozeirão do latifundiário.

— Não quero que a ferrovia passe por minhas terras! E ponto final!

O projeto da Estrada de Ferro São Paulo-Minas estava quase terminado. Seria de poucos quilômetros de extensão, de bitola estreita, com locomotivas movidas a vapor e que ligaria Ribeirão Preto, no estado de São Paulo, a São Roque da Serra, em Minas. Todos aclamavam a construção, pois seria um meio rápido e eficiente de escoar a grande produção de café dos municípios da região. Além do serviço de transporte de passageiros entre as cidades que se situassem ao longo dos trilhos.

O comendador saiu de imediato, deixando os participantes da reunião de boca aberta. Ninguém podia entender uma recusa de tal tipo.

—É o progresso que chega! — exclamou o prefeito.

—E muitas novas oportunidades, além do transporte de café, irão aparecer. — Giuseppe Pergamino, imigrante e proprietário de um sítio não muito grande, era um grande entusiasta da ferrovia.

A reunião prosseguiu, pois havia detalhes a serem discutidos com o representante da “São Paulo - Minas”, engenheiro Dr. Lacerda Costa.

Porque o fazendeiro Comendador Josino Fagundes era um inimigo da estrada-de-ferro? Era um segredo que ele mantinha e que só seu filho, doutor Fagundinho, médico com consultório no Largo da Matriz, sabia. É claro que não havia nenhuma razão para a divulgação do fato e tanto o pai como o filho se calavam a respeito.

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Não fazia muito tempo, talvez menos de dois anos, o comendador fizera uma das poucas viagens de sua vida. Seu compadre de longa data, proprietário da fazenda Santa Rita, Totonho Silveira, estava doente e pedia a visita do compadre.

A fazenda situava-se no município de Guaxupé, uma cidade onde o progresso chegara há tempos. A viagem, feita a cavalo, pois não havia sequer estradas entre as duas cidades, durou uma semana. Como o comendador era atacado volta e meia por uma falta de ar, Fagundinho, o filho, fez questão de acompanhar o pai.

A visita ao velho compadre resultou na compra da fazenda Santa Rita pelo comendador. Pai e filho permaneceram na cidade quase uma semana, a fim de tratar do pagamento e do registro da transação em cartório.

Uma movimentação inusitada de pessoas pela cidade indicava que alguma coisa extraordinária estava para acontecer.

—É a inauguração da estrada-de ferro — explicou o filho.

—Estrada-de-ferro? Que negócio é esse? — perguntou o pai. — Nunca ouvi falar.

Fagundinho tentou explicar ao pai o que era a estrada-de-ferro, a locomotiva, o trem. Inutilmente, pois o velho simplesmente não acreditava.

—Pois fiquei sabendo que a inauguração será amanhã. Poderemos ir assistir a chegada do primeiro trem-de-ferro à estação.— Acrescentou o filho.— Vai ter até discurso, fita inaugural, uma grande festa.

Na manhã seguinte, lá estavam o comendador e o filho, no meio do povaréu. As autoridades estavam em um tablado elevado e o povo aglomerava-se pela estação, e ao longo dos trilhos. Uma cerca de arame farpado, erguida de ambos os lados dos trilhos, mantinha o povo afastado dos trilhos. Notava-se uma organização perfeita, característica dos engenheiros ingleses, construtores da ferrovia.

A animação era geral. De vez em quando, foguetes troavam nos ares.

Quando a locomotiva apareceu numa curva. Distante uns quinhentos metros da estação, soltando fumaça e apitando estridentemente, o povaréu começou a gritar de entusiasmo. Mas à medida que se aproximava a máquina, chiando e apitando, soltando fumaça pela chaminé e vapor pelas na altura das rodas laterais, algumas pessoas, aterrorizadas, começaram a debandar, correndo para longe dos trilhos.

—Não se assuste pai, a máquina não sai dos trilhos. — Fagundinho procurou acalmar o pai.

Na tribuna as autoridades permaneceram firmes. Mas o povo, contaminado pelo susto e pelo medo, fugiu em passa. As cercas de arame farpado foram arrebentadas. O povo estava em pânico. O comendador, apesar do aviso do filho, não conseguiu se segurar. O medo foi maior. Fagundinho tentou segurar o pai pela mão. Não conseguiu. Também foi espremido pelo povaréu.

Correram para longe daquela maquina monstruosa que punha fumaça no ar e vapor no chão.

Quando se safaram da confusão, o comendador e o filho, exaustos, sentaram-se no chão. As roupas amassadas, rasgadas em alguns lugares. Muita gente ainda continuava correndo. Os foguetes pipocavam nos céu.

—Isto é coisa do capeta! — Gritou o comendador.

—Calma, pai, não tem perigo nenhum. Ela não sai dos trilhos.

—Ainda bem, porque se saísse, matava todo mundo.

Os dois voltaram ao hotel onde estavam hospedados. Chegaram suados e com as roupas em estado lamentável. O doutor viu que algumas pessoas sorriam — um sorriso de deboche.

Ainda sob o efeito do medo, da correria e do cansaço, o comendador falou no recinto, com seu vozeirão profundo, para que todos soubessem de seu desgosto pela estrada-de-ferro:

—Nunca mais quero saber dessa coisa do diabo.

Desde então, o comendador tornou-se inimigo numero um do trem-de-ferro.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 2 de agosto de 2010

Conto # 615 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

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Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 05/01/2015
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