581-CASAMENTO NOS QUINTOS DOS INFERNOS
Foi numa pequena cidade do interior, como centenas de outras espalhadas pelo vasto Brasil, que o fato aconteceu. Um fato tão inusitado que abalou a estrutura da pequena sociedade, dos costumes e até da paróquia.
Ariranga tem pouco mais de cinco mil habitantes. O povo, pacato por natureza, convive com a seca constante, a falta de água e, em alguns anos, com a fome devido à frustração das safras de feijão.
O sol claro e quente do sertão faz com que os habitantes se tornem calmos, conformados com a falta de chuva, os olhares sempre postos no céu, por onde, na estação das chuvas, no dito “inverno”, passam as nuvens que nem sempre deságuam sobre a região.
Vivem de esperança e amargam desesperanças. Ajudam-se mutuamente nas épocas de dificuldade e festejam juntos os dias de alegria e felicidade.
Ninguém se incomoda com a vida do vizinho, não correm fofocas, pois o povo é de uma simplicidade inacreditável. Tolerante, aceitam até mesmo uma situação que a princípio foi diferente, mas agora já ninguém mais comenta.
Quando chegou a cidade, para substituir o falecido Frei Antão, o novo pároco padre Helionis trouxe consigo uma menina como “ajudante” para os que-fazeres da casa paroquial. Mas o povo soube, logo após a posse, que a menina, de oito anos, chamada Rejane, era filha do padre. Entretanto, a simpatia, o carisma do novo administrador da paróquia eram tão grandes que ninguém se incomodou em falar maledicências ou sequer murmurar com malícia sobre a situação.
Os anos passaram-se e a vida da pacata cidade continuou.
Até que um casamento veio perturbar a calmaria. José Alfredo e Paloma casaram-se no último domingo de maio, mês das noivas, com toda a pompa e circunstância. Vestida com um longo branco de cauda, alugado para a ocasião por R$400 na vizinha cidade de Rio Seco, a noiva estava deslumbrante. Alta, morena, encorpada e elegante, enganou a todos, até o padre. Pois Paloma era um travesti, Romualdo de Souza. José Alfredo, o noivo, claro, sabia de tudo.
Após a cerimônia, foi a filha do padre, Rejane, moça esperta, quem desconfiou. Seguiu o casal e constatou (não se sabe como) que Paloma não era mulher.
— O casamento foi de dois homens, ela avisou o padre. — A noiva não é mulher, é um travesti que se chama Romualdo.
Padre Helionis ficou furibundo.
—Santa Clementina! Mas eu não sabia! Este casamento não é válido.
—E eles mostraram os documentos mostrando que a noiva era uma mulher, disse Rejane, que ajudava o pai/padre nos livros e registros paroquiais. — Se o senhor não comunicar ao Cartório este casamento, ele não tem nenhuma validade.
Padre Helionis mandou um recado aos dois, Romualdo (a Paloma) e José Alfredo, avisando-os que o casamento não valia.
Quando soube, Paloma saiu-se com essa preciosidade:
—Não contei ao padre que era do sexo masculino, porque é só olhar pra mim para saber. Sem contar que todo mundo na região me conhece e sabe quem sou.
O padre não concordou em devolver R$ 180,00 que cobrou pela cerimônia.
—A cerimônia foi realizada, tive despesas e fui enganado. Não devolvo o dinheiro.
Paloma, exaltada, ameaçou o padre de processá-lo.
—Quero meu dinheiro de volta. Além do mais, gastei quase R$2.000,00 para a festa, convidei cerca de 450 convidado lá em Rio Seco, onde a gente mora, e tive de cancelar tudo. E, além do mais, padre que tem filha não tem moral pra não casar duas pessoas do mesmo sexo.
O padre Helionis, indignado, perdeu a calma, esqueceu-se da caridade cristã e do perdão, e retrucou:
—Pois se eles não são daqui de Ariranga, que vão se casar nos quintos do inferno!
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 12 de dezembro de 2009
Conto # 581 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS