Blasfêmias nunca devem ser ditas...
Nunca pensei que sentiria saudades de você, meu amigo, mas hoje tenho que admitir que estou sentindo. Você, simples pessoa, que não era dado aos luxos e que fazia as coisas ficarem bem barulhentas naquela secretaria. Qualquer funcionário da prefeitura sabia que você não passava por um colega sem oferecer uma carona. Por tudo isso e muito mais, resolvi contar algumas de suas histórias para que mais tarde ainda me lembre. Quem sabe minha memória me falte e eu me esqueça de você.
Chamava-se Ademir Grátis e era um verdadeiro moleque na arte de pregar peças em todo mundo. Vivia a contar aventuras que talvez nunca tenha realmente vivido. Chamava a esposa de rainha e a filha de princesa. Vivia a elogiar sua família e por isso apesar de suas molecagens era pra mim um bom exemplo de pai e esposo. Andava descalço, com a mesma camisa que cheirava a suor. Sempre que podia a tirava e ficava sem ela até que algum chefe o mandasse colocar de novo. Era motorista da secretaria de obras da nossa cidade mas estava sempre a postos pras outras secretarias. A prefeitura para evitar de pagar-lhe tantas horas extras lhe fez até uma proposta: Pagaria sessenta horas extras por mês e ele ficaria a disposição. Estava a disposição da secretaria de Ação Social desde então, nos finais de semana para servir ao Conselho Tutelar. Ele também levava os jovens alunos da faculdade de Santa Tereza. Uma cidade serrana bem alta.
Havia um colega de trabalho, um cidadão chamado Gilberto, que era sua vítima predileta. Chegava pra ele e começava a xingar Jesus e Deus. Gilberto saia se benzendo e dizia que Deus o castigaria. Se fosse um pouco esperto, olharia para o carro de Ademir e veria que era cheio de adesivos de santos. Demi, como o chamávamos era religioso. Católico e praticante. Daqueles que levava a família a igreja. Cansei de encontrá-lo lá. Ótimo amigo e colega. Franco demais nas respostas. Se blasfemava era só pra atentar o pobre do Gilberto que ficava apavorado. E deixando-o assim, caia na gargalhada.
Um dia, falávamos de enchente e Ademir, só pra atentar o Gilberto, olhou pro céu e começou a xingar Jesus e dizer que ele não era homem. Que se ele fosse macho mandava uma enchente que cobriria a cidade inteira. A secretaria de obras ficava em cima de um morro bem alto. Se a tal enchente realmente viesse, cobriria toda a cidade O Gilberto quase chorou. Saiu correndo dali deixando o Ademir às gargalhadas. Alguém disse a ele que não devia abusar de Deus. Ele disse que era brincadeira e que Deus conhece bem as pessoas e sabe quando elas estão falando pra deboche.
Acho que Deus não é vingativo, acredito sim que o inimigo, sim é capaz de fazer de tudo para a gente pagar a língua. Alguns dias depois, Ademir foi levar os jovens alunos na faculdade e entre eles estava sua filha. A estrada para Santa Tereza era uma banguela muito difícil, muitos quilômetros, ladeada por precipícios. Em uma determinada curva Ademir deu de cara com um caminhão cortando outro. Num gesto rápido, pensou que se virasse o volante pra esquerda, cairia no precipício com a juventude a bordo e morreriam todos. Então, deixou o caminhão bater do lado dele de forma que ele apenas, e mais ninguém, fosse atingido pelo caminhão. Resultado: Ademir morreu na hora. Os outros se salvaram.
Todos nós ficamos muito tristes. Ele foi um herói que salvou a vida daqueles jovens, inclusive a sua filha. Tenho certeza de que Deus o recebeu de braços abertos. Seu bom humor deve estar fazendo sucesso no céu.
Bom, você deve estar me perguntando sobre a enchente que Ademir “pediu”. Ela veio sim. Na primeira semana do governo da Prefeita Naciene, em 2006, Minha cidade Ibiraçu, sofreu a maior enchente que já foi presenciada por seus moradores atuais. Cobriu a rua inteira. As madeiras da Madeireira local invadiram as ruas e quebraram vitrines e portas de estabelecimentos comerciais e residências. Muitos sofreram com ela. Muitas famílias perderam tudo. Saiu até no jornal Nacional. Pena que Ademir não estava aqui pra presenciar. Nem Gilberto, que deveria achar que a culpa era do Ademir.Claro que não é nada disso. Ademir nunca desejou realmente que isso acontecesse, primeiro porque as primeiras pessoas a serem atinguidas foram da sua família. Blasfêmias não devem ser ditas, nem em tom de brincadeira. Vai que o inimigo ouve...