NÃO TEM PALPITE CERTO
Irmã, mulé, vá banhar sua alma com solda cáustica! Isso mesmo, porque sua carne já está putrefada faz tempo, só a senhora não sente o fedor que nem o talco alfazema nem as bolinhas de naftalina de sua roupa tira, vote! Mulé, eu só espero que esse plano funerário que a irmã paga já tenha caixão duplex porque vou te dizendo e sei que nem precisa dizer, mas no dia do seu enterro tem de ser um caixão largo para o seu corpo de anta e um caixão extra para sua língua, pense... Já dizia a sua vó Filomena, que Deus a tenha, quem muito olha pro rabo dos outros, acaba esquecendo do seu!
Mais eu não digo mesmo, só porque virou de lado, agora só quer andar de banda, como se tivesse dado jeito no pescoço! Esse desgosto eu não dou nem a minha mãe, nem a minha vó, nem a minha bisavó, que catequizou a minha vó, catequizou a minha mãe e me deixou de herança esse oratório inteiro, sabe como é? Pois então! Não me venha dar uma de tonta que sei muito bem como cantar por santo subir.
Né assim, vivia querendo acertar no bicho, vivia fazendo as rezas e espalhando as brasas por aí, agora, só porque mudou de fé, fica condenando a fé dos outros, pode? Eu não acho certo! Cada um com a sua verdade e ninguém de butuca na cerca do outro. Devolva já a minha garrafa de água benta, o meu galhinho de ramo santo, o sal grosso que te dei para aquele banho, a muda de pé de pião roxo, as contas do meu rosário e aquele quadro de Iemanjá que te presenteei no natal passado, anda, vá caçoar dos outros em outros terreiros, no meu não! Vou já ali arriscar na bilhar do galo já que estou aqui a prosear com você, é, porque o galo cisca pra trás, pula de galho em galho e ainda canta de valente e lembrando que ontem tive um sonho contigo, sabe como é, aqueles sonhos que sempre tive, de ver o passado e acertar o futuro ou o presente.
Nessas horas me faz uma falta danada a sua vó, a finada Filó que Deus a tenha, embora seja melhor ela morta pra não morrer mais de desgosto com você criatura... Ainda me lembro quando você era criança de uns três anos, o bucho puraculá de grande, cheinho de lombriga, lembra? Sua vó, a finada Filó, que Deus a tenha, fazia o chá da pepaconha e lhe dava a força; fazia aqueles lambedor de raiz e quando que não só via você despejando de caganeira uma ruma de lombriga! Mas o pior de tudo foi o seu sarampo, lembra? Você tinha uns cinco anos, foi brado! Na ignorança daquele tempo, sua vó, a finada Filó, que Deus a tenha, que não estou falando mal dela, nunca, inventou de dar um banho de querosene em você que ficou com a vista turva, lembra? Foi cegando aos poucos e você era feia de doer, nossa, só me lembro do aperreio de sua vó Filó, que Deus a tenha, em se apegar com santa Luzia, a padroeira da vista, e fez aquela promessa de se você ficasse curada ia até o fim da vida assistir as nove noites de novena com os pés descalços, em traje de santa, no dia treze de dezembro ia acompanhar a procissão, em traje de santa, de pés descalços e com uma pedra na cabeça! Vai mais não, né? Imagino como não esteja a sua vó, a finada Filó, que Deus a tenha, lá no céu, do lado da santa e sua ingratidão aqui do outro lado! Ficou boa, né não? Voltou a enxerga, embora mais tarde tenha criado os dordói no olho esquerdo e tenha ficado caga, mas ainda me lembro, irmã, como tu era feia e a sua vó Filó, a finada, insistente! Você já tinha seus onze anos, já tirava os terços, ia as missas aos domingos e estudava no catecismo, tava pra fazer a comunhão quando apontou a barriga da cigana e nasceu os terçóis no seu olho, a cumade Filó, a finada, se aperreou e foi importunar santo Expedito, o santo das causas impossíveis! Atentou tanto o bichinho para olhar procê que ele inté olhou, mas de banda, como tu faz agora, porque ele levou os furúnculos, mas deixou a cegueira... Tu era tão feia, lembra, irmã? A gene tudo lisinha, passando cebola pra ver se crescia os peitos e aos doze anos os seus já concorriam com as vacas leiteiras, os cabrochas chamavam você de malhada, lembra? O mesmo nome da vaca da casa grande...E a vida não te deixava em paz! Com quinze anos, na nossa festa da Crisma, aquela peste de piolho, vixe, foi um Deus nos acuda só, ninguém queria ficar perto de você e a sua vó, a finada Filó, que Deus a tenha, na penitência de todos os dias lambuzar seu quengo todo de óleo de coco, pegar o pente de arraia e tirar todas as lendias, mas nada dava conta, teve de passar creolina e depois raspar todo o couro cabeludo. Irmã, tu já era feia, imagina, e careca, com um olho cego, de peito grande e bunda larga! Não tinha promessa certa, mas para sua vó, a finada Filó, que Deus a tenha, com uma fé maior que o universo, apelou para São Lázaro, prometeu um banquete para os cães e criar um cento de gato que você ficou boazinha! Aquilo era ter fé, visse, e nem ficava feito galinha, ciscando para traz, nem rastejando que nem cobra... Lembro-me quando você, já de dezesseis anos, doida pra beijar e nada, nenhum rapaz queria fazer tal caridade e você passou a babar, dar aqueles passamentos, aquelas confusão, aqueles desmaios e novamente as rezas e as promessa da cumade Filó, a finada, que Deus a tenha, foi se socorrer de Santo Inácio! Mudou seu nome, lembra? Não, não se preocupe que não vou dizer, pode ficar despreocupada porque eu sei que o milagre se desfaz e eu tenho muito respeito por sua vó, a finada Filó, que Deus a tenha! Vinte e cinco anos e já se sentindo no caritó, a cumade Filó cansada já, puxando de uma perna depois da trombose, ainda pegou o santo Antônio, amarrou o bichinho e o colocou de castigo, de cabeça para baixo, dentro da cisterna, para que ele pudesse lhe arranjar marido, ela tinha medo de partir e você ficar largada por aí, ou se perdesse na vida. Dizem as más línguas que ela comprou o carroceiro das frutas, esse imprestável que você chama de marido! Dizem que sua vó, a finada Filó, que Deus a tenha, pagou uma dívida antiga de jogo de baralho que o finado seu avô devia ao pai do carroceiro e em troca ele casaria com você! Dito e feito o estrago... Veja aí o tal negócio, você se lascando de trabalhar, lavando roupa de ganho e ele alisando a barbicha e coçando o saco no jogo do dominó... Sai pra lá encosto, vá lavar sua alma com solda cáustica, sebosa, salgar essa carne putrefada, ande que já está de ameidinha!
Só porque mudou de crença agora é santa, num tem mais pecado nem promessa! Pois eu tenho um palpite que é um tiro e uma queda, se eu tivesse dinheiro não deixaria de arriscar, sabe como é?! Nasci e me criei nessa crença e vou inté o fim. Acendo minhas velhas, faço minhas orações, amarro os meus santos, tenho água benta, faço adivinhação, não vejo pecado arriscar a sorte no bicho e quando vem uma criança até mim, pego um galhinho de arruda, uma penca de vassourinha, tiro mau olhado, esparrela caída, quebranto, bucho inchado... Só não curo feiura, porque isso, nem sua vó, a finada Filó, que Deus a tenha, conseguiu tirar de você, e olhe que a veia tinha uma fé que ninguém duvidava, mas vá lá, tem ou não tem uns trocados pra gente arriscar na milhar do, é do... Cambista, cambista, chegue cá que tou doidinha pra jogar no bicho, acertar na mosca, ande, essa noite eu sonhei com um morto vivo todo emplumado, eu acho que só pode ser um pau..pau.. pauvão!