Ô vida aperreada, meu Deus!
Visita que a gente deseja nunca chega, mas as que não são bem-vinda, pense, nem precisa de convite para chegar. Eu, de manhã cedo, de frente ao espelho penteando os cabelos do meu bigode e de repente a má sorte me rondando... Marche pra dentro da garra, seu cão tinhoso, ande, e nunca saia de dentro dela seu fedorento a enxofre. Azedume de um figa, rasga mortalha. Sou pescador sim, e daí? Daí que mesmo com esse olho enxergando turvo, essa perna que ora me falha e as mãos quase já sem governo, nunca errei um lance, nunca coloquei de molho meu anzol sem que minha isca não fosse mordida, e veja o tamanho dos peixes, só peixão na minha cesta. Certo que com o passar do tempo, as pescadas vão ficando escassas, o corpo vai derreando mais, as forças diminuindo, mas ainda sou muito macho pra pescar, tirar as escamas, cozinhar e enfiar o peixe de goela a baixo, doa a quem doer, pra você hoje, logo hoje achar de sair da garrafa e atanazar meu juízo. Sou macho de comer uma buchada inteira com cuscuz, completar com uma panela de um boi de marra e comer o fígado fresco, do fresco que inventar de emendar as pontas do meu bigode, tá entendendo seu cão moleque! Logo hoje, logo hoje que inventei de amanhecer de caganeira, pense! Nem sei, meu são Francisco, nem sei por que isso me acontece? Perdi as contas de quantas vezes me alevantei durante a noite, fui ao banheiro, fiquei lá sentado naquele vaso frio e uma frieza vez por hora na nuca a zunir no meu pé do ouvido. Fora as vezes que nem aguentei chegar no banheiro, os destroços foi feito ali mesmo, nas calças para ter de aguentar uma carniça dessa, agora, aqui como você. Eu sou um miserável mesmo, um filho de uma gata enjeitada, um sopro de nada no meio de nada mesmo... Pra tirar o cheiro de inhaca do focinho invitei de passar perfume e acabei abrindo o vidro errado, pense do mau agouro que sou eu, eu, um João Ninguém da silva, pescador de vida inteira, veterano, pescado por esse filho de uma mula coicera! Eu vou é pescar que é o melhor que eu faço.
Nem sabia que a parede de minha casa tinha ouvido, que as oiças dela eram boas e iam dar na cozinha, pense, foi uma brincadeira de telefone sem fio num piscar de olho, assim, como o tempo passa e a gente nem vê; como carteira roubada sem que o dono dê conta. Vesti rapidinho a roupa, peguei nem bornó e foi só o tempo de abrir a porta do quarto e entrar com o pé esquerdo na cozinha, a veia de olho grelado, mais feia do que nunca, de avental, um pano na cabeça e a boca sem nenhum dente, cheio de farinha dizer, aos berros:
_ E vai querer sair sem dar uma beliscada na minha tapioca?
_ Tou meio fastioso, quero nadinha não!
_ Nem dar uma assoprada no meu cuscuz?
_ Também não, tou meio sem fôlego, tou querendo arriscar não!
_ Mas uma mordidinha só na minha tangerina você quer, sempre quis.
_ Mas hoje eu num quero não, já escovei a chapa e não quero mais sujar...
_ Meu vei, use o canudo e dê só uma chupada na abacatada, tá do jeito que cê sempre gostou, no pontinho...
_ Não minha veia, já disse que não! Ainda tou me recuperando da rabada que você me deu no almoço, não lembra? Você colocou tanta farinha no pirão que pensei até que não ia dar conta!
_ Apois, meu vei, senti a macaxeira tão mole, os ovos cozidos além do ponto... Se bem que vi que você suava mais que minha panela de pressão, até pensei que eu tivesse exagerado no sal que quando cê se levantou cambaleando e foi pra rede deitar, eu fui e ofereci o resto da rabada ao cumpade vizinho que ele comeu que lambeu os beiços e arrevirou os olhos e ainda disse que fazia tempo que não comia uma rabada tão boa. Eu ainda disse que você tinha feito cara de quem comeu e não gostou e ele disse que era porque você não tinha mais idade para comer rabada.
Pronto, depois de uma dessa dizer mais o quê? O bucho em desarranjo, a catinga de enxofre solta no ar, a farinha saindo por todos os cantos daquela boca de cacimbão, o meu nome na rua e uma dor de dente de me tirar o resto do tutano que ainda me restava. Fazer o quê? As unhas! Pedir a veia que ferva a água, me faça um cafuné, porque depois que se come as carnes, mesmo sem dente, é preciso que se roa os ossos até o fim. Ô vida aperreada, meu deus!