Resíduos de Um Tempo

Não guardo quase nada da minha infância e pouco sei de mim. Eu era a minha amiga mais íntima e a minha pior conselheira na maioria das vezes.

Lembro de algumas passagens em que o meu lado oculto salientava na mais brusca e seca tiragem.

Era na linha daquele velho trem de minério, onde descobri o meu lado mais escuro e amedrontador. Eu andava comigo mesma prestando atenção no tempo e nas coisas a minha volta. E sussurrava bem baixinho, próximo às orelhas para que ninguém escutasse.

Eu em mim, dissolvíamos o olhar para aquele céu azul de cegar os olhos. Era mágico e fascinante! Isso até os nossos corações pularem para fora de nossas bocas quando a cena aterrorizante pintara num relance.

Eu e a minha amiga mais íntima, iríamos descarrilar aquele velho trem, esse era o nosso maios desejo.

Tínhamos o hábito de encostar o ouvido nos trilhos para que pudéssemos detectar a altura em que o veículo estava (pura bobagem). Pegávamos duas pedras e batíamos na cadência de um som inebriante: tetec-tetec-tetec-tetec... e íamos nesse ritmo desafiador diante da nossa percepção auditiva, porém, jamais descobrimos a altura em que a máquina estava.

Esse era o alimento da minha alma, e, da outra parte que me encobria, - eu e ela, juntas, sempre.

O momento era perfeito. Enchíamos os trilhos de pedras e imaginávamos a cena de terror: O trem virando e revirando seus vagões até desprenderem-se um a um. Seria o máximo!

Quando dávamos conta, já era quase três da tarde. E que fim levou o demônio do trem que não deu os ares de sua graça? Olhei para dentro da minha amiga, e senti a decepção estampada e gritante. Como se os espinhos furassem todas as suas vísceras, mas não sangrasse, portanto, um coágulo preso e indefeso aos olhos de quem a visse, - eu e ela, nós duas, sempre, ali imaginando o descarrilamento que nunca aconteceu.

De repente, senti o estremecer dos trilhos. Chegara a tão sonhada hora. E ele vinha apitando e se requebrando todo, apontou na curva, sambou de um lado para o outro desafiando-nos, chegou mais perto, e com o seu magnífico peso, esmigalhara todas as pedras enfileiradas.

E nesse momento olhei novamente para ela, e agradeci pelas pedras trituradas. Agradeci pela serpente de minério tão majestosa que movimentava-se lenta na sua sapiência vivida e profunda.

O maquinista ainda acenou-me num tom cordial. - Ei, você já foi ao sítio do japonês hoje? Tem peixinhos novos no lago e eu sei que você gosta.

Nesse momento, destilei a vítima numa overdose quase pagã, desmanchando o coágulo pétreo do coração.

E continuei comigo mesma, sempre.

Kathmandu
Enviado por Kathmandu em 04/11/2014
Reeditado em 04/11/2014
Código do texto: T5022386
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