O CHOQUE AGULHADO
Em meados da década de 1980, a casa em que morávamos precisou passar por uma reforma.
Como éramos 11 irmãos, mais pai e mãe, tivemos que improvisar dormitórios na casa da minha tia Luzia, que era anexa à nossa, inclusive com acesso por dentro.
Uns foram para os quartos, outros para a sala e eu, para ficar mais “sossegado”, preferi me instalar sob a mesa da copa. Porém, um dos meus irmãos – o José Eustáquio (Kika), era implacável no quesito azaração. Sobretudo para comigo.
Todos os dias, ao amanhecer, ele vinha do quarto em que dormia e ia para o tanque lavar o rosto. Nada demais se não fosse por um detalhe: antes de chegar ao tanque, ele fazia uma parada digamos, flatulenta em meu “aposento”. Após cantar o refrão da mesma musiqueta: “a mulher que o trem matou morreu, morreu? Que triste fim, morreu pela primeira vez. Morreu com o nariz fazendo assim: hum, hum, hum, hum, hum, hum, hum, hum”, batia na barriga e liberava os fartos e sonoros oprimidos.
Lavava o rosto e novamente o refrão: “a mulher que o trem matou morreu, morreu? Que triste fim, morreu pela primeira vez. Morreu com o nariz fazendo assim: hum, hum, hum, hum, hum, hum, hum, hum”.
A minha esperança era a de que ele parasse voluntariamente com aquele asqueroso comportamento. Mas quanto mais ele contava para as pessoas o que vinha fazendo, mais ânimo ele tinha para continuar “desgaseificando” sobre mim.
As pessoas me perguntavam: “Rafael, você não vai fazer nada?”. E eu respondia: “ainda vou preparar uma para ele”.
Só que toda a revanche que eu pensava, eu achava que era pouco. Afinal, a situação já perdurava por mais de dois meses. Pensei em dar um chute com a ponta do pé no traseiro dele, achei que era pouco. Quem sabe dar um choque, achei que era pouco também. E uma agulhada? Pouco também.
Despretensiosamente, ao abrir uma das gavetas do armário de minha mãe, deparei-me com duas agulhas de injeção. Naquela época as agulhas de injeção eram 100% de metal, tinham um gargalo para o encaixe à seringa.
Imediatamente me veio à ideia uma forma de usar as agulhas em uma ação de vingança: Providenciei uns três metros de fio paralelo, e, em uma das pontas, instalei um plugue macho. Na outra ponta, enrolei cada perna do fio a uma das agulhas e adaptei em uma tomada.
Com o artefato devidamente preparado, na noite anterior deixei tudo mais ou menos ajeitado, para, logo ao amanhecer, por em execução o plano macabro.
Tendo passado tanto tempo sob o jugo do malfeitor conhecia bem o seu modus operandi, o que ia facilitar as coisas para mim.
Enfim, aproximava-se o momento da vingança. Foi só o galo cantar e lá veio o agente do mal cantarolando: “a mulher que o trem matou morreu, morreu? Que triste fim, morreu pela primeira vez. Morreu com o nariz fazendo assim: hum, hum, hum, hum, hum, hum, hum, hum”. Fez o de costume e se direcionou ao tanque para a higiene das mãos e da face. Nesse momento eu me levantei e, com ar de muita alegria, esfreguei freneticamente as mãos, chamando a atenção de uma de minhas irmãs, a Maria Luiza, para que presenciasse a ação vingativa que estava por vir.
Liguei a tomada, segurei a ponta que continha as agulhas energizadas com cuidado e firmeza, aguardando o tão esperado momento.
Não demorou muito e o alvo da minha vingança retornou para a segunda etapa do seu ritual: “a mulher que o trem matou morreu, morreu? Que triste fim, morreu pela primeira vez. Morreu com o nariz fazendo assim...” e no momento em que ele agachara, deixando bem exposto o seu traseiro branquicela, eu, sem piedade cravei as agulhas em suas nádegas, ao que ele deu um pulo contra a parede, com aquilo agarrado, eletrocutando suas ancas. Foi algo tão brutal que ele não entendia o que estava acontecendo.
Passados mais ou menos dois meses, eu o surpreendi se olhando no espelho. Sem ter como ocultar, disse: “OLHA O QUE OCÊ FEZ, Ó!”. Então eu reparei em sua nádega esquerda, dois pontinhos pretos simetricamente contornados, marquinhas essas que com certeza marcarão eternamente a sua lembrança.