O GEMIDO DO JOÃO DA NICA
Munidos de muita cachaça e toucinho assando na chapa de ferro, as noites no sertão das gerais eram aquecidas pelos causos contados pelos octogenários. Os poucos fios de cabelos brancos, a voz baixa e os olhos fixos nos cenários que a mente colhia nas rajas do tempo.
Década de trinta, lá pelas bandas do Rio das Velhas. Tio Acrísio reunia toda a família ao redor do fogão a lenha. Por vezes, os causos se prolongavam a noite toda. Lendas e histórias que sobreviveram a gerações.
Melhor mesmo era a risada gostosa do João da Nica. Como dizia tio Acrísio, ao contrário de muitos que viviam na fazenda, ele era um negro sem pigmentos de outra raça, neto de escravos, descendia dos lendários guerreiros do quilombo do Ambrósio que ficava lá pros lados de Ibiá.
Os causos continuavam e os mais jovens eram dominados por um medo que dava pena. Acabavam dormindo no colo das mães ou nas esteiras de palha estendidas sobre o chão de terra batida. Ir para o quarto sozinho nem pensar.
João da Nica tinha lá seus cinquenta anos embora parecesse bem mais jovem. Como não tinha sido registrado, cada dia, dizia ter uma idade diferente. Nascido por aquelas bandas, ele vivia de roça em roça. Era um homem sozinho. Tinha mentalidade de criança.
Tio Acrísio gostava por demais dele, permitindo que se juntasse à sua família, sem qualquer discriminação. Desengonçado e esquelético, quem não o conhecia, sentia medo do pobre coitado.
E todos riam mais da risada do João da Nica que dos causos. Muitas vezes, histórias fúnebres, de assombração, mula sem cabeça, alma penada. Causos da cultura de raiz, de negros, índios e os temíveis bandeirantes. E ele inocentemente caía na risada levando todos com ele. Dava até dor de barriga de tanto rir! João da Nica dizia que quando morresse ia puxar o pé de todo mundo que estava naquela cozinha. Ninguém dava bola para o que dizia, afinal gozava de uma disposição de dar inveja até aos jovens.
Todas as noites, lá estava ele, de cócoras no rabo do fogão, cuidando do toucinho para não queimar. A luz do fogo iluminava sua gargalhada banguela. Terminada a prosa, cada qual corria o mais rápido possível para sua cama. Enquanto isso, o João da Nica andava duas léguas no meio do capim gordura. Somente o firmamento a guiá-lo até seu barraco de adobe e folhas de bananeira. Mas não tinha medo não, como sempre dizia.
Sexta-feira santa, família reunida na cozinha. Os trovões prometiam uma noite de chuva brava. Os bancos estendidos, a cachaça de gole em gole. O cheirinho de toucinho e os ânimos à flor da pele com aquelas histórias que tio Acrísio jurava que aconteceram.
Lá pela meia noite, o sono veio a galope. Hora de todos se retirarem. Tio Acrísio era quem batia o martelo, liberando todos para seus aposentos.
Mas naquela sexta-feira santa, ele nem teve tempo de terminar a oração que sempre fazia. João da Nica, depois de comer quase uma banda de toucinho frito, deu um gemido longo e profundo de arrepiar até os cabelos de baixo. Tombou mortinho aos pés do fogão.
Foi um Deus nos acuda e quem disse que havia homem suficiente para, pelo menos, esticar o pobre coitado? Noite mais longa naquela época não houve. Os relâmpagos quebrando a escuridão e a chuva caiu noite adentro. O medo assolou até os mais velhos.
O João da Nica foi enterrado envergado e os olhos esbugalhados, para o pavor de todos que vivenciaram aquele trágico causo real.
Naquela cozinha, tio Acrísio nunca mais conseguiu reunir a família. João da Nica tornou-se um fantasma criado pela imaginação daquelas pessoas. Nunca mais dormiram com os pés fora da coberta.
Na família, os que nasceram depois, desde crianças ouviam falar do João da Nica. Meia nos pés até nas noites quentes de verão. Décadas depois e quem viveu ali, jura que em noite de trovoadas, escutavam as gargalhadas do João da Nica.
Denia Dutra - Num passado não muito distante