448-O CAVALO MENTIROSO

A turma dos cabeças-brancas é persistente nas reuniões semanais, na calçada ao lado da revistaria Milpáginas, defronte minha casa. Também faço parte do grupo, que, num ritmo cada vez maior, vem registrando baixas freqüentes. São os amigos de saúde precária, recolhidos ao lar (e, mais das vezes, ao leito) ou que passaram para o andar de cima, como está sendo hábito hoje em dia chamar o que quer que exista no além imaterial.

Ajuntamos-nos aos sábados e domingos, pela manhã, entre nove horas e meio-dia. Nuca além da uma da tarde, quando a revistaria é fechada. Ficamos de papo, jogando conversa fora e tomando umas cervejinhas. Às vezes, aparece uma pinga especial, garrafa sem rótulo e fechada com sabugo de milho; ou torresminhos quentinhos, providenciados pelo eminente jurista (que ainda não tem a cabeça branca) doutor, Delson Venezuela.

Conversa vai, conversa vem, sempre aparece um com um causo “daqueles”, que a gente acredita só para não perder o amigo. E as patranhas se sucedem. Estabeleceu-se, daí, um consenso, a ver quem contava o causo mais incrível. Ou seja, quem contasse a maior mentira.

É um concurso sem prêmio. Ou melhor, o prêmio é justamente a gozação dos companheiros, que se referem às melhores histórias como “aquela do Zéca”, ou a “história do Dão”, atribuídas aos autores da contação.

Não pode haver contestação nem interrupção. Quando alguém começa contar um causo, os demais ouvem com atenção e solenidade, como se fosse uma parábola bíblica. Por isso, a história vai até o fim, por mais “imaginativa” que seja.

Num desses sábados Nicanor contou a história do cavalo mais bem treinado e educado que já existiu. Tento reproduzir a história, mais ou menos assim:

Era um alazão malhado, de crina negra, marchador elegante e rápido nas corridas. Fora treinado por Zé Gaúcho, um dos melhores amansadores de cavalos de todo o sul de Minas. Esse alazão se chamava Imperador e sabia tudo o que um cavalo deve saber. Não tinha rival nas raias e canchas, ganhava todas as corridas das quais participava.

Certa ocasião, quando o Circo Montenegro passou pela cidade, o diretor soube das qualidades do Imperador e mostrou desejo de comprá-lo.

— Nem que ele me oferecesse dez bestas carregadas de ouro, faria negócio com meu Imperador. — Disse o proprietário.

Pois aconteceu um acidente envolvendo o Imperador que quase põe fim à sua existência, mas mostra bem como o cavalo era bem treinado e até mesmo educado. Não se sabe bem como, o famoso cavalo, tendo chegado á beira de um barranco, no pé do qual corria a rodovia, perdeu o equilíbrio e despencou, barranco abaixo, caindo justamente sobre uma camioneta que transitava pela estrada. Caiu de tal maneira que quebrou o pára-brisa dianteiro e acabou sentado no banco, ao lado do motorista.

Assustado, o motorista parou a camioneta, com grande perícia. Contudo, ficou assustadíssimo quando o Imperador, saindo por sobre o capô do motor, falou em alto e bom tom:

— Me desculpe susto e pelo vidro quebrado. — E saiu da camioneta, em garboso passo de desfile.

Todos escutamos, calados, a narrativa do Nicanor. E calados ficamos, matutando como é que pode um animal se treinado a ponto de pedir desculpas. Até que, interrompendo o silêncio, Laurindo Cruz perguntou:

— Esse alazão, por acaso, não era propriedade do Coronel Militão?

— Era, sim. Coronel Militão, da Fazenda Moinho Velho.

— Conheci esse cavalo. — Prosseguiu Laurindo. — Era mesmo muito treinado e muito bem educado. Mas num acredito que ele tenha se desculpado, não. Não nessas palavras que o Nicanor tá falando.

— Uai, Dimas, cê parece São Tomé! Só acredita vendo? — alguém questionou.

— É que, como disse, conheci o Imperador. E ele era educado, sim, mas era também muito mentiroso. Mentiroso pra daná!

Antônio Gobbo

Belo Horizonte, 1 de setembro de 2007

Conto # 448 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 03/10/2014
Código do texto: T4985797
Classificação de conteúdo: seguro