440-JUCA TRAQUE-Quase tragédia em festa junina
Era época das festas de Santo Antônio, São João e São Pedro, mês que transcorria entre rezas de terços, novenas, fogueiras e comemorações dos santos juninos.
Na chácara da tia Emerenciana havia um tríduo para cada um dos três santos. Na antevéspera, na véspera e na noite do santo, rezava-se o terço defronte à bandeira, que permanecia na sala de visitas, iluminado por muitas velas votivas. Na noite do santo, após o terço, acontecia a festa. Em primeiro lugar, levantava-se a bandeira sagrada no alto de comprido bambu. No quintal, a pilha de lenha, galhos e gravetos já estava pronta. O fogo era ateado e ao mesmo tempo em que a paulama ardia, Chico do Fole “mandava ver” na sanfona de muito baixos o repertório apropriado para a ocasião.
Enquanto o pessoal se distraia com as brincadeiras ao redor da fogueira, dentro de casa eram servidos os quitutes preparados pela tia e por duas ajudantes, especialistas em quitutes e do famoso quentão, apropriado para combater a friagem da noite. Entre broas de fubá, biscoitos de polvilho, pães de queijo, bolos os mais deliciosos, canjica, pés-de-moleque e outros doces, destacava-se o mangarito com melado de rapadura. Só de lembrar me vem água na boca: os pequenos carás sobre os quais se derramava o melado desmanchavam-se na boca, com um sabor incomparável.
Mas o que quero contar mesmo é a história do Juca Traque, que ficou com esse apelido justamente pelo acontecido numa festa de Santo Antonio.
Já era mocinho, devia ter uns quinze anos naquela ocasião e gostava de aparecer. Quer dizer, fazia tudo para chamar a atenção das garotas.
A mãe era costureira, como as de antigamente, que sabiam fazer qualquer tipo de roupa, de simples camisas a ternos completos. Dona Fiinha era caprichosa e cheia de idéias.
— Este ano vou fazer pro Juquinha uma roupa especial pra ele ir às festas de junho.
E fez uma bonita roupa de caçador (hoje se diz “roupa para safári”). Em brim cáqui, a camisa comprida, com quatro grandes bolsos, usada fora da calça. Esta, bastante estilosa, também com bolsos e vincos impecáveis.
Ele era nosso companheiro de algazarra. Não estudava, pois a mãe, mesmo trabalhando muito, não podia pagar o curso ginasial. Entretanto, estava sempre com a turma de antigos colegas de grupo. Quando apareceu na festa de Tia Emerenciana, com sua roupa nova, arrasou.
— É o uniforme dos caçadores que vão matar leões na África. — Foi logo explicando para nós, os amigos, mas em voz bastante alta a fim de que fosse ouvido também pelo bando de meninas que estavam por ali, ao redor da fogueira.
— E estou cheio de “munição”. Vejam. — E foi exibindo os bolsos cheios de bombinhas, traques, “chuviscos”, foguetinhos, fósforos de cor e outros artefatos para queimar na festa. Claro, tudo coisa de uso permitido para os menores, que ninguém da nossa turma ia ser besta de trazer foguetes, bombas ou rojões.
— Vamos lá dentro pegar pipocas. — O Waltinho deu a idéia e fui com ele. Nem bem havíamos subido a escada, quando ouvimos um grito. Olhei para baixo e vi o Juca correndo que nem louco.
Uma fagulha de foguete, soltado entre vivas a Santo António, foi cair justamente num dos bolsos da roupa nova. Foi muito azar, mesmo.
Os traques, foquetinhos e outros artefatos pegaram fogo e começaram a estourar e queimar. Juca ficou louco, saiu gritando e correndo, sem rumo. Parecia o Tocha Humana dos gibis. Alguém pegou na gola de sua camisa, arrebentando todos os botões. Num lance de tino e destreza, Juca arrancou a camisa e jogou para longe — exatamente pra cima da fogueira. Então, o pandemônio se instalou no pátio: foguetinhos saíram como cobras de fogo, voando em todas as direções, as bombinhas estouravam no meio do fogo, os traques pulavam, pareciam ter adquirido vida, as rodinhas incandescentes voavam loucamente.
O povo ficou baratinado. Fomos atropelados pelos que queriam ir para dentro de casa. O terreiro ficou deserto. Apenas a fogueira na qual, além dos fogos de Juca, queimara também sua bela camisa tipo “caçador da África”.
Passado o susto e acabada a “munição”, voltamos à fogueira. Juca, sem camisa, nada sofrera além do susto. Mas estava inconsolável, as lágrimas brotavam-lhe dos olhos. Não se sabia se pela perda da camisa ou se pelo fiasco perante as meninas. .
E mais tarde, quando a gente conversava sobre o acontecido, lembrava sempre do azar do Juca que, desde então, pegou apelido que o acompanhou pelo resto da vida: Juca Traque.
ANTÔNIO ROQUE GOBBO –
Belo Horizonte, 21/junho/2007.
Conto # 440 da Série Milistórias –