Urubu *
Se eu tivesse dinheiro, compraria uma estrada. Uma estrada que não fosse longa, mas que tivesse começo e fim. É que, normalmente, ou as estradas não começam, ou dão em lugar nenhum. Isso não é apenas metáfora.
Urubu discorda disso, só pelo prazer de discordar, por que tem gente que é agourenta e valida a analogia. Assim é Urubu.
Provo que a maioria das estradas não têm começo, se ninguém habita o princípio duma; nem fim, pela mesma razão. E daí, se Urubu me acha louco? Se sou louco, sou. Uma gente louca inventou loucuras tão benéficas, meu dedinho, que eu passaria a vida enumerando. E quem disse que Urubu merece? Eu poderia falar, por exemplo, do telefone, do avião, do chip, et cetera, et cetera e tal. Mas não. Urubu não merece. Que vá pensar sozinho, deduzir sozinho, cientificar-se sozinho. Vá!
Enfiei na cabeça que quero uma estrada. Bitolei meu cérebro nisso e, desde então, só nisso penso, defendo.
Devo ter enlouquecido. Se enlouqueci, Deus vai me salvar, porque ser doido é ser inocente, um rabisco de santo. Se sou um rabisco de santo, então é com Deus. Ele sabe o que fazer. Se fiquei doido, certamente minha doidice se limita a querer, a arder por uma estrada própria, minha, minha. Não vou eu agora dizer como Deus deva trabalhar. Você duvida que Ele saiba trabalhar meus rabiscos de doido em santo? Eu não duvido. Se virei doido com esses pensamentos, foi alguma linha que Deus trabalhou para beneficiar a mim ou a outrem. Você sabe? Eu não sei. Só presumo. E que mal há em presumir? Urubu deve achar “o fim”. Urubu acha tudo “o fim”, se não foi ele quem explanou.
E a minha estrada? Eu não desisti dela, por Urubu haver enterrado minas em meus projetos. Minha estrada tem de ser e será larga. Só a compro, se assim o for. O bolso está vago, dinheiro dele não se ocupa. Por quê? Por que Urubu escreveu que sou doido e não posso ter dinheiro nem estrada?
Imaginei a estrada ideal para mim: uma estrada bem projetada, com sinalização eficiente. Se eu deixaria Urubu nela transitar? Sim, naturalmente, mas ao longe!, que fique claro isso! Não sou egoísta. Urubu pode olhar bem – de longe! –, para ela. Porém, ter uma estrada como a minha, isso ele não pode. Disso ele não se apraz, e de o saber tanto, toma-me de doido e me quer deteriorar em meus projetos, naqueles que vou engendrando para meu feliz futuro.
E futuro de Urubu são as sobras! Sabe bem ele o que lhe é reservado; quer auferir urgentemente, portanto.
Urubu é ansioso, tem a fome dos abismos pelo que apodrece; uma fome que nada aplaca, nem toneladas da decomposição mais eficaz. Busca seu alimento em pressa animalesca, para não perder a próxima carcaça.
* Trecho do livro: ARREBOL, da escritora Maria Montillarez
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Boa leitura,
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