Em noites frias
Mesmo no verão as noites estavam frias e causavam certo desconforto no pescoço da Otilia. Mas afinal, se perguntava: o que estava fazendo sozinha no meio da estrada e com um filho pequeno enrolado em cueiros num sono que dava gosto; olhando em frente, para o breu, sem nenhuma luz a iluminar o caminho que dava acesso à estrada geral para Cruzeiro do Sul?
Ia ou ficava? Tinha um longo caminho pela frente, mas tinha também outro tão longo caminho de regresso.
Pensou no pequeno quando saiu de casa e foi sem direção apenas para desanuviar a mente um tanto conturbada com os acontecimentos que vinham se desenrolando desde sempre e desde então vivia num fio que a segurava em casa. Um fio tênue que se desmancharia tão logo seguisse em frente, sem ninguém saber, sem desculpar-se com ninguém, sem ficar dando explicações para o inexplicável.
O regresso se mostrou quente quando viu o filho enrolado na friagem da noite, mas a ida só com a roupa do corpo para lugar nenhum a deixou pesarosa e com frio. Iria? Seria um recomeçar de tudo e isso lhe dava a ânsia de seguir adiante e caminhar sem parar e o pequeno soluçou um instante fazendo com que Otilia voltasse o pensamento para a empreitada dura que talvez o bebê não suportasse, tampouco ela.
Olhou para trás enquanto dava o peito de mamar e viu pequenas luzes ao longe num convidativo voltar. Tudo era conhecido e mais fácil de viver ali naquela cidade em que vivia, voltou as costas para a estrada geral e o frio tornou-se insuportável e igual ao que sentiu em toda a sua vida, um frio de amargura que ia em seu íntimo e que não saía de seu peito nem quando o neném mamava com fome.
Finalmente pensou em si. A sua carne precisava de liberdade, de planos e objetivos que a fizessem perder o ardume de sua alma, precisava alcançar o amor próprio para seguir adiante, mas um medo podava-lhe o movimento das pernas. A cabeça ia, mas as pernas não obedeciam e o pequeno dormiu pendurado no peito.
Virou-se para a estrada geral e pensou que estava com fome e onde estava com a cabeça ao sair de casa sem um pedaço de pão. Olhou para os pés do pequeno para certificar-se que estavam bem cobertos e arrumou o cueiro em sua cabeça para que a friagem não pegasse na moleira. Olhou para si e estava um trapo, como sempre esteve durante a vida inteira e sabia que podia modificar-se se quisesse, mas conseguiria?
Conseguiu dar um passo e parou, olhou para trás e sentiu novamente aquele inverno relutante e as luzes a piscarem nas casas, algumas chaminés com fumaça e um cheiro de comida avançou-lhe nariz adentro, fazendo com que fechasse os olhos um instante para descobrir o que estava assando lá longe distante de tudo, mas ao mesmo tempo dentro de seu coração. Enrolou o filho mais um pouco com medo que o gelo que sentia em seu corpo passasse para ele e então se voltou para a cidade e começou a chorar.
Chorou com os soluços sofridos e com a verdade que sentia dentro de si, um renovar de vida, de sentido, de luta íntima e cuidou para que as lágrimas não caíssem no rostinho do pequeno que já estava colado ao seu.
Sentiu o calor do nariz dele e foi isso o que lhe deu forças para se decidir, porque mesmo no verão as noites eram frias e aquele
desconforto em sua nuca a fez decidir-se pelo que era melhor para a sua vida e para a vida do filho tão pequeno, tão dependente que ressonava em seu colo alheio às suas decisões. Bastava-lhe o amor.
E era só.