O MENINO QUE SONHAVA ALTO
- Papai, a gente também pode voar?
- É claro que não, me filho! Só os passarinhos e os morcegos voam, porque eles tem asas, nós não temos!
- Uai, lá na escola, a professora falou que um homem inventou “um trem” que voa!
- Ah, sim, é verdade! Se não me engano, o nome dele era Thomaz não sei de que. Não, este inventou foi outra coisa, me parece que foi o rádio ...
- Oouhh, não ensina coisa errada ao nosso filho, homem de Deus! Se não sabe direito, melhor não ensinar errado, ora! Quem inventou o rádio foi um tal de Marcondes, lá dos estrangeiros, né? – interveio a mãe.
- Pode ser ... pode ser! Assim como, também pode não ser, sei lá! Quem pode me garantir que este sujeito inventou alguma coisa? Por acaso, você viu, hein? Só acredito naquilo que os meus olhos estão vendo, isto é o que é! – discordou o marido, que nunca perdia uma discussão.
Edson tinha apenas nove anos, era muito curioso e inteligente, além de arteiro, pois aprontava todas as peripécias imagináveis. Uma delas era montar nos bezerros da fazenda, claro que escondido do pai, que, se via, dava-lhe severas broncas. Não aguentava ver nenhum bezerro meio distraído, ruminando o seu capim, que lá vinha ele, e zazzzzzz, pulava em cima, e vibrava muito quando o bicho reagia aos pulos.
Também não perdia a oportunidade de montar nos potros selvagens, que viviam soltos pelos chapadões, e que vinham beber água no rego que servia ao monjolo e ao carneiro hidráulico. Quando esses animais chegavam, o moleque dava um jeito de fechá-los na cocheira, atraindo-os com sal, colocava-os no tronco que servia para vacinar e marcar o gado, escolhia um deles, passava-lhe uma corda por baixo do “suvaco”, nela segurando com firmeza. Depois, abria a porteira deixando que a manada saísse na carreira, ele grudado em cima do bicho, gritando muito e incitando-o para que pulasse ainda mais. O potro saía dando pinotes, muitas vezes derrubava o menino logo adiante, mas, também acontecia, de vez em quando, dele conseguir aguentar por mais tempo em cima do animal.
Numa dessas ocasiões, acabou caindo de mau jeito numa moita de gabirobas, o danado acertou-lhe um coice bem pego do lado direito da cabeça, quase atingindo a fronte, e isto lhe causou um amassamento lateral pelo resto da sua vida. Chegou em casa tonto e sangrando pela boca, nariz e ouvidos, sua mãe levou um grande susto, deu um jeito de levá-lo ao médico o mais rápido possível, porém, este falou que não tinha acontecido nada de mais grave, que era só colocar uma bolsa de gelo, e pronto! Nem uma radiografia foi feita. Só com o tempo, disse ele.
Naqueles tempos, quase sessenta anos atrás, as noticias que chegavam à fazenda eram trazidas pelos “mascates” que compravam e vendiam de tudo na região, ou pela professora que sempre ia à cidade, e trazia as novidades de lá. Ela também trazia alguns livros do Francisco Marins e do Monteiro Lobato, sendo que o Edson, quando não estava aprontando alguma das suas, os devorava rapidamente. Vibrava com as aventuras vividas pelos personagens desses dois autores, principalmente. Tentava imitá-los, juntava as crianças da região,e brincavam dessas coisas durante algum tempo.
No entanto, logo se cansava disso, pelo menos até que a mestra trouxesse alguma coisa que lhe chamasse a atenção. O que mais lhe interessou, certa vez, foi um livro didático que Dona Inês usava para ensinar-lhes sobre as grandes invenções da humanidade. Passava horas imaginando como é que podia ser um rádio falar e cantar, se não havia nenhuma pessoa lá dentro? O jeito foi desmontar todinho o aparelho que seu pai havia comprado há pouco tempo, pelo que até ganhou uns bons puxões de orelha.
Só desistiu do assunto quando ela falou sobre o avião, que era uma máquina em que o homem conseguiu voar pela primeira vez. Disse maravilhas a respeito do avião e do seu inventor, contou que já era possível cruzar os mares e chegar à Europa em poucas horas, etc. e tal. Enfim, aquilo aguçou demais a imaginação do garoto, e ele queria, por que queria, ficar conhecendo aquele aparelho o quanto antes. Só falava disso, nada mais tinha nenhuma importância para ele. Foi aí que a mestra lhe trouxe uma revista “O Cruzeiro”, em que havia fotos ilustradas daqueles “bichões” dos ares, utilizados na segunda grande guerra mundial. A matéria, em si, não lhe representou grande coisa, porém, ficou fascinado com os aviões militares. A primeira coisa que fez foi um chapéu igual aos dos pilotos, utilizando-se de algumas folhas da revista, que falavam de coisas diferentes, e que não lhe diziam respeito.
Passava horas envolto naqueles pensamentos, se imaginava dentro dos aparelhos, dando tiros e jogando bombas nos alemães e japoneses, até fazia ruídos com os lábios, imitando o barulho do motor, não tirava aquilo da cabeça, o dia inteiro. Reunia os colegas, fazia planos, dizia que um dia ainda seria piloto militar, viajaria o mundo inteiro, e não aceitava qualquer argumento em contrário. Era o seu sonho, e ponto final!
Enfim, voar tornou-se uma obsessão em sua cabecinha, e ele decidiu que o faria o quanto antes, e de qualquer jeito. Ficava observando o voo dos pássaros, principalmente, gostava da elegância dos urubus, mas, sobretudo, da agilidade dos gaviões e carcarás, quando atacavam sua vítimas, fazendo-o vibrar com incontida emoção. Então, tomou uma decisão radical. Ele mesmo faria um par de asas com couro de vaca, material abundante na fazenda do pai, já que na ultima seca havia morrido bastante gado, sem que nem todo o couro pudesse ter sido aproveitado. Fez armaduras com bambu nas extremidades, aderiu o couro nas mesmas, firmemente, adaptou-as aos próprios braços, treinou bastante o movimento das “asas”. Só não conseguia dar um jeito no rabo, outra peça importantíssima. Pensou, pensou, e decidiu que faria um com folha de coqueiro mesmo, o que daria até uma certa elegância ao seu voo.
Pensado, dito e feito, pois o moleque não era de desistir diante do primeiro obstáculo. Antes, subiu numa árvore e pulou, gostou do resultado, embora não desse para chegar muito longe. Depois, fez outro teste num ”esbarrancado” , atingiu uma distância de trinta metros, ficou ainda mais satisfeito, só que queria muito mais. Foi então que teve a ideia de saltar de cima de um alto morro que havia nas proximidades, e lá foi ele, resoluto e confiante. Não contou nada a ninguém, mas pretendia “pousar” num campinho de futebol pouco antes de uma “pelada”, para que todos vissem o seu sucesso. Aguardou o momento oportuno, preparou-se, e lá foi ele, correndo e se atirando no espaço. Só não contou com uma forte rajada de vento em sentido contrário, que o fez rodopiar, não conseguiu bater as asas conforme pretendia, e acabou por cair bem em cima duma densa moita de bambus, o que foi a sua sorte, porque amorteceu a queda, mas não impediu que ficasse preso lá em cima, sem poder sair sozinho. Foi necessário que a turminha da “pelada” o retirasse, e claro que aquilo foi motivo para muitas piadas durante um bom tempo.
Acredito que este foi o primeiro protótipo da “Asa Delta” dos dias de hoje.