359-DOMICILIO ATUAL-Burocracia em Inventário

Inocêncio, homem feito, de seus quarenta anos, poderia ser tomado por retardado mental, tamanho era seu alheamento ao mundo em que vivia. Por ser filho único, levou uma vida isolada de tudo e de todos, com os pais, na sitioca distante cinco léguas de São Roque da Serra.

Passou pelos bancos escolares apenas o suficiente para aprender a ler, escrever e fazer troco de dinheiro. Mais não aprendeu por faltar muito às aulas, a fim de ajudar o pai no trato das pequenas roças de arroz, milho e feijão, sustento da família de três.

Passou a meninice e a juventude nessa vida de garoto do mato. Não tinha curiosidade nem era incentivado pelo pai, “seu” Simplício ou pela mãe, dona Maria da Esperança, para sair de casa, ir à cidade, ver coisas diferentes. Quando o pai morreu, tinha mais de trinta anos e passou a tomar conta, sozinho, do sítio. À mãe viúva foi concedida uma pensão, obtida graças à idade avançada e devido ao esforço de Totó Miranda, comerciante na cidade, padrinho de Inocêncio, que sabia da penúria da comadre sem marido e do afilhado órfão.

A mãe seguiu o pai alguns anos depois, ficando Inocêncio sozinho na tapera do sítio, trabalhando de sol a sol, sem mesmo saber a razão de tanto trabalho. Não era dado a pensar na vida, por isso, continuou a mesmice da vida sem sentido.

Depois de uns quantos meses, por ocasião da entrega de três sacos de arroz no armazém de Totó Miranda, este perguntou a Inocêncio:

— Então, Nocêncio, já cuidou do inventário do sítio?

— Inventário? Qui inventário, padrinho?

— Ora, seu! Do sítio. Com a morte da dona Maria, o sítio fica sendo seu, mas tem de fazer o inventário.

— Num sei de nada dessas coisas da cidade, não sinhô.

— Pois já tá passando do tempo. Tem prazo.

Desejando ajudar o afilhado, recomenda:

— Olha, vai no centro, no Fórum e procura o Doutor. Ganimedes. Ele vai te ajudar. Toma, leva este bilhete e entrega pra ele. — Rabiscando algumas palavras num papel de embrulho, despacha o alienado.

Inocêncio chega a custo no centro da cidade, pois lá havia ido umas poucas vezes. Pergunta daqui, pergunta dali, encontra o edifício do fórum e o Doutor Ganimedes.

— Quando sua mãe morreu?

— Faz uns seis meses. Num tenho certeza.

— Precisamos saber da data. E dar entrada logo no inventário. Já passou da hora. O prazo é de trinta dias a partir do falecimento. O senhor não sabia?

— Sabia não senhor. Moro na roça e....

— Não é desculpa. No Brasil, ninguém tem desculpa de ignorar a lei.

— Mas eu nem sabia que tinha esse tal de inventário. Meu pai morreu faz anos, minha mãe faz uns seis meses, tou tomando conta do sítio, não tenho que inventar nada.

— Inventário, seu moço, é quando uma pessoa morre e deixa bens – casa, fazenda, sítio, essas coisas.

— Pra que isso? Todo mundo da vizinhança lá do sítio sabe que eu sou fio dos meus pais, e já que eles morrero, eu sou o dono. Tá certo?

— Tem de ser feito a fim de que o senhor, que é herdeiro, fique na posse legal.

— O senhor tá dizendo, deve ser assim mesmo. Eu não sei dessas coisa de lei, não sinhor.

— Olha, já temos umas despesas. Uma certidão de óbito da senhora sua mãe...

— Qui qui é isso?

— Um papel do cartório, dizendo o dia em que sua mãe morreu. E também já tem uma multa, porque já passou dos trintas dias para abrir o inventário.

— Oi, seu doutor, assim de repente num tenho dinheiro aqui comigo não sinhor. O senhor diz quanto qui é, que vou buscar lá em casa. Guardo numa lata de bolacha, bem fechada e escondida, o senhor sabe, pra ninguém disconfiar.

— Então se apresse.

Dois dias depois, eis de novo Inocêncio visitando o doutor Ganimedes.

— Vim trazer o dinheiro. Mais, o senhor tem certeza de que é isso mesmo? Vou ter de pagar pra ter o sítio de meu pai?

— É assim mesmo, seu Inocêncio. É a lei.

Dr. Ganimedes embolsa as velhas notas amarrotadas e sujas. — Volta na semana que vem para assinar os papéis.

Na quarta-feira seguinte, após assinar procuração e outros documentos, Inocêncio é informado pelo advogado:

— Ah! O gerente do banco me falou que sua mãe tinha uma pensão, que faz mais de ano que ela não recebia. Vai lá e fala com seu Nestésio, o gerente.

No Banco, o gerente manda uma funcionária atender Inocêncio. Ela consulta o computador, e informa:

— Sim, ela tem pra receber mais de mil cruzeiros. Fala para ela vir aqui receber.

— Ela já morreu.

— Morreu? Então, só com ordem do Juiz o senhor poderá sacar a pensão da sua mãe..

Atarantado com tanta informação e palavras novas, volta ao Dr. Ganimedes, que obtém do Juiz um mandato a fim de que Inocêncio possa retirar o dinheiro da pensão de sua santa mãezinha.

Volta ao banco com o papel que lhe foi dado. De novo, a mocinha o atende com simpatia. Consulta o computador.

— Puxa vida, não é possível. Não podemos pagar. Falta uma providência.

— Qui é qui tá fartando? — Indaga Inocêncio, cada vez mais zonzo.

— A senhora sua mãe não renovou o CPF, que deveria ter feito no começo do ano.

— No começo deste ano? Ara, mais ela já tava morta, dona.

— Ah! Então nada posso fazer.

— Mais eu num tenho curpa. Ela divia ter providenciado isso antes de morrê. Agora, cumo é que nóis faiz?

— Bom, vou levar o caso para o gerente. Ele é quem dá a última palavra.

A jovem funcionária vai ao gerente e lhe explica tudo. Enquanto ele examina o problema, Inocêncio argumenta:

— Eu inté nem sabia dessa pensão da minha santa mãezinha.

— Pois é. Mas está difícil

— Por favor, seu Nestésio, me ajuda. Já tou até meio besta de tanto ir e vortar, atrais de juiz, advogado, essa papelama sem fim.

— Não é que eu queira, mas é determinação do Banco Central. Sem CPF atualizado, a gente nada pode fazer.

Mas, a seguir, o gerente vê uma possibilidade.

— Ah! Acho que achei uma saída. — Dirige-se à funcionária — A senhorita a preenche um modelo 42, com nome, endereço, etcetera. Não se esqueça de nenhum dado, senão o computador rejeita.

A funcionária volta e começa a perguntar a Inocêncio os quesitos exigidos pelo Formulário 42.

— Qual era o nome da senhora sua mãe?

— Dona Maria da Esperança da Silva.

— Qual é o domicílio dela?

— Dominci...lio? — Inocêncio estranha a palavra, a boca aberta, na expressão suprema da ignorância.

— Sim. Domicílio. Residência. — A mocinha já mostra impaciência. — Onde que ela mora?

— Ah, bem. Pra dizer a verdade verdadeira, agora, dispois que ela morreu, tá morando no cemitério.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/08/2014
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