345-O DEPOIMENTO DE ZECA PRATINHA-Bom Humor

A sala do fórum estava apinhada. O crime causara revolta e sensação na pequena cidade e o julgamento do acusado — importante figura do local — catalisava a atenção de todos os moradores de Itamarutaca.

O crime fora banal, até onde se pode dizer que uma morte seja banal. De uma confusão armada no bar do Juvenal, no centro da cidade, resultara tiroteio e a morte de Neco Lino, que, aliás nada tinha a ver com o entrevero.

Carlinhos Lemos, filho dileto do poderoso coronel Quincas Lemos fora o autor do disparo fatal, que atingiu Neco Lino no baixo ventre. Estava embriagado e não teve a presença de espírito de fugir da cena do crime, para escapar ao flagrante.

— O moço estava caindo de bêbado — uma das testemunhas firmou, no primeiro depoimento, tendo retirado a afirmação, pressionado pelas ameaças do coronel. Enfim, não teve como livrar o Carlinhos do xilindró, pois o delegado D’Avanti era rápido na ação e rigoroso na execução da lei, no que lhe competia.

O coronel trouxe da capital o melhor advogado disponível no momento: o doutor Ganimedes Frutuoso, especialista em causas criminais, famoso por suas atitudes inusitadas e da linguagem jurídica altamente rebuscada, para não dizer ininteligível, no tribunal e fora dele.

O julgamento começara às nove da manhã e pelas três horas da tarde inda se arrastava. O doutor Ganimedes esmerava-se no interrogatório das testemunhas, dava um verdadeiro espetáculo de conhecimento jurídico, expresso em um palavrório que poucos dos presentes entendiam.

— Meritíssimo Juiz, chamo para depor o cidadão José da Silva Prates de Albuquerque. — Falou com pompa o doutor Ganimedes.

Silêncio no salão. Ninguém atendeu ao chamado do advogado. O juiz indaga da assembléia:

— Está presente a testemunha José da Silva Prates?

Silêncio. Parece que a testemunha não estava. Foi quando se ouviu uma voz, vinda não se sabe de onde:

— Ô Zeca Pratinha, tão chamando procê ir lá pra cima.

Levantou-se entre os assistentes uma figura saída do livro de Monteiro Lobato, o próprio Jeca Tatu, um tipo conhecido por todos os leitores. De vagar se aproximou do juiz, que mandou proceder ao ritual de praxe: identificação, juramento, etc.

Sentado que foi, Zeca Pratinha não entendia as perguntas feitos no palavrório altamente técnico e rebuscado do doutor Ganimedes. A coisa desandou quando este lhe perguntou:

— A testemunha poderá informar ao tribunal se o tiro foi antes, no meio ou depois da refrega?

Zeca Pratinha não entendeu a pergunta. Fez aquele ar abobalhado, passou a mão pela testa, limpando o suor. Engoliu em seco. Tossiu. Olhou para os jurados, depois para o Juiz, como que procurando ajuda.

O advogado insistiu na pergunta:

— A testemunha queira informar se o tiro foi antes, no meio ou depois da refrega?

Zé Prata ficou vermelho, depois amarelou. Por fim, passando a mão nos ralos fios de cabelo do queixo, revelou:

— Uai, dotô. Num foi nem in antes, nem durante nem adispois. O tiro foi entre a refrega e o umbigo.

As gargalhadas espocaram no salão. Nem mesmo o juiz, severo em sua magistratura, pode esconder um sorriso. Foi difícil restabelecer a ordem. Por mais que batesse o martelo, o pessoal não parava de rir.

É o próprio Dr. Ganimedes quem relembra e conclui a história.

— Finalmente, consegui obter o silêncio necessário para prosseguir. Mas não teve jeito. Fui obrigado a interromper a sessão daquela tarde, porque quando achava que tudo estava calmo, a próxima testemunha sendo inquirida, alguém dava uma risadinha que era o bastante para contagiar toda a assembléia.

— E como terminou o julgamento? Perguntou um dos ouvintes.

— Bem, a maneira enfatuada e altamente rebuscada do advogado da defesa, conseguiu livrar da cadeia o filho do coronel. Mas aposto que os jurados não entenderam nem a metade do que o empolado advogado falou durante o julgamento.

ANTÔNIO GOBBO –

Belo Horizonte, 21 de maio de 2005.

Conto # 345 d série Milistórias =

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 31/07/2014
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