Só Uma Fase
Naquela noite, a briga foi feia. Mesmo após treze anos de casados, Jorge saiu batendo a porta, deixando Suzana na sala completamente exaltada. Isso era um ritual que se repetia a cada uma ou duas semanas. Suzana se cansou de gritar para o nada e como sempre fazia, apanhou um copo de água com açúcar na cozinha. Bebeu. Não contente, foi até a estante mogno da sala e encheu, no mesmo copo, uma medida de tequila. A essa altura, já tinha se tranquilizado um pouco. Caminhou devagar até a poltrona verde-musgo, que ficava virada em direção a porta. Ao lado do assento, uma mesinha serviu de apoio ao copo, assim como à luminária, que Suzana ligou, apressando-se, então, em chegar ao interruptor e apagar a luz da sala, antes de se afundar no breu da poltrona reclinável.
Agora na casa dos quarenta anos, Suzana lembrava de quando conheceu Jorge, devia ter uns dezesseis anos na época. Foi mesmo um amor de adolescentes! Ela pensava que ficaria para sempre com seu Príncipe, pelo menos até seus pais resolverem se mudar de Caxias para Curitiba e terem acabado com o namoro. Foi quando a vida os separou... As cartas diminuíram com o passar dos meses, e as fichas de Orelhão, cessaram com o tempo. Reencontraram-se doze anos depois: Ela estava viúva, o coitado do Rogério morrera num acidente de carro, deixando um filho ainda criança. Jorge estava divorciado, pagando pensão para três meninas que moravam, então, com a mãe. Parecia que ambos tinham tudo para dar certo juntos. Adolescentes crescidos, agora, filhos criados. Suzana não entendia o que ela teria feito de errado.
"Uma fase..." Franziu a testa ao lembrar o que sua mãe havia dito, que era só uma fase, logo o relacionamento voltaria a harmonia conjugal. E como a sogra do Jorge poderia estar errada? "- Eu mesma passei por isso, seu pai deu bastante trabalho! Você precisa ser mais paciente, querida." dizia a mulher para Suzana, com aquele ar de sabedoria das pessoas mais velhas. A Senhorinha era capaz de compor uma lista de fulanas que teriam vivido a mesma situação.
Ritualmente, Suzana dormiu na poltrona da sala. Acordou num susto com o telefone que tocava insistentemente. Ela deu uma olhada a sua volta, quando lembrou que o aparelho de telefone da sala tinha estragado, estavam de comprar outro já fazia um mês. Lembrou-se também que tinha pés, em especial o direito, que formigava. Enquanto corria escada acima, deu-se conta de que a circulação do seu sangue talvez não mais permitisse pernoites na sala de casa. Ela escorregou no tapete do corredor, apoiou-se na parede e se recompôs. Quando finalmente chegou na porta do quarto para atender o telefone, ele já havia parado de tocar. Alguma coisa estranha estava acontecendo... Na cabeceira da cama, o rádio-relógio marcava sete horas e trinta e dois minutos, e o sol iluminava todo o ambiente através das persianas entre-abertas.
Jorge sempre chegava até seis e meia ou sete horas, mas ele não estava lá. Ela chamou, em voz alta. Ninguém. Percebeu que a lombar doía, era uma dor aguda. "- Não tenho mais idade para esse negócio de fases!", resmungou.
O telefone tocou novamente. Desta vez ela estava perto.
- Suzana de Oliveira Barbosa?
- Sim, ela mesma.
A notícia do outro lado da linha fez seu corpo hesitar. Ela sentou-se na cama, largou o telefone no criado-mudo, emitindo um barulho repetitivo de ligação finalizada. Deitando-se devagar, se esticou até alcançar o travesseiro do marido, apertou-o contra o peito. Sua visão tornou-se embaçada e a fronha logo ficou umedecida. O cheiro dele sumiria, provável, na primeira lavagem. Carregou, ainda atônita, o travesseiro até o andar de baixo. Lembrou-se do acidente de carro do falecido marido. Não, ela e Jorge não tinham tudo para dar certo. Suas mãos tremiam, mas nada tinha a ver com a circulação. Sentou-se na poltrona verde-musgo, num silêncio digno de luto. Sempre teria uma inconveniência, um acidente para...ah, quem dera ser apenas como qualquer uma das fulanas da lista de sua mãe!
26.06.2014