Som na Caixa... (EC)

- Bom dia compadre João!

- Âra ma Nossa Sinhora! Ói quem tá aqui muié! Diaa cumpadi Manel! Se achegue!

- Bom dia comadre Ana!

- Boom dia cumpadi João! Deu furmiga lá, foi?

- Formiga? Onde?

- Âra! Na sua casa! Tá sumido! Mora longe, na cidade... pra tá aqui nessa hora da manhã deve de ter sucedido arguma coisa! É ca cumádi é?

- Não, a sua comadre está muito bem... quem não está bem sou eu!

- Num me digue uma coisa dessa hômi, qui é qui tu tem?

- Sei inda não... mas o médico ficou de descobrir quando sairem o resultado dos exames. Mas está desconfiado de stresse, ou síndrome do pânico, ou estafa, ou fadiga, pode ser um monte de coisas.

- Nossa! Quesse monte de coisa deve de ser intão uma ipidimia!

- Rs. Não é pra tanto! Compadre, é que estou precisando da sua ajuda!

- Pois já tá ajudado no qui pricisá! Qui é qui nóis tem que fazê pra mode ajudá o amigo duente? Muié vai passá um café forte e matá uma galinha caipira pro cumpádi... mió, mata duas, que ele tá qui só osso e nada mió qui canja de galinha pra curá hômi duente...

A mulher nem pestanejou e já saiu no quintal atiçando o cachorro ensinado a pegar as galinhas no terreiro. O cachorro pegou uma, se animou quando viu que era pra pegar outra e se entristeceu quando percebeu que a farra tinha acabado naquela segunda... sua dona sumiu lá pra dentro carregando pelas pernas as galinhas em espasmos...

- Du qui é qui tu percisa?

- De paz! Só de paz e sossego compadre!

- Vixe! Só disso? Aqui tem tanta paz e sussego que é inté capaiz de tirá a paz de quem num tá custumado quela... veio ao lugar certo.

- Posso ficar aqui com vocês até domingo, pra descansar das coisas que me incomodam na cidade?

- O cumpadi pode ficá inté o resto da vida se quisé, pruquê pra nóis é mermo que sêsse de sâing da famia e é muito quirido pur todos nóis.

- (risos) Só até domingo já tá bom!

- Mas, me conta, qui é qui tá sucedeno cocê pra tê disincadiado essa doençaiada toda?

- (irônico) – Problemas nas caixas!

- Êita! Nas caxas do peito? Então é mais grave do que pensei...

- (riso acanhado) - Também! Mas é uma palpitação no coração, uma disritimia de nervoso. Uma estafa de tanto trabalhar, e na cidade tem muito barulho, muita coisa incomodando e lá não tem jeito de se livrar do problema. Fui ficando cada vez pior, triste, depressivo, irritado... Aí procurei um médico que ascultou meu coração e disse que estou com sintomas de síndrome do pânico e me mandou tomar um monte de remédios, calmantes, e, por fim, me mandou ficar uns dias numa fazenda, aí, pensei no senhor e aqui estou. Me dá muita tremedeira quando passa os carros com as caixas de som ligados na maior altura em qualquer hora do dia e da noite, com música de gosto duvidoso, propaganda política, propaganda de lojas comerciais. O povo perdeu o respeito e a educação.

- Vixe! Intão lá tá ansim é? Intão tá intão! Fica o tempo qui quisé, mar já vô logo avisano... aqui o qui mais tem é caxa! Mar é das bôa, qui cura!

- Caixa que cura? Não acredito! Do que é que o senhor está falando?

- Carma! Vô te mostrá! Mar antes toma cum café minêro, cum fartura cá muié preparô, inquanto toco uma moda caipira de viola... Conhece essa cumpádi? Pur nome de “Minha Viola”?:

“Quand’eu saí do meu sertããão, não tinha nada de meu, a num sê essa viooolaa, qui foi meu pai quem me deeu...” (Versão aproximada de Raul Seixas)

- É só uma caxa cum curva de muié bunita, qui tem umas cordinha e sorta um som lindo de morrê desse e cum ela a gente transforma in cantiga tudo de bom qui tem no mundo e também o qui tem de ruim, mar de um jeito bom de ouvi... Nessa caxa a gente fala das coisas bela, das coisa bôa, das coisa triste, de tudo, de um jeito que dá um nó na garganta e faiz parpitá o coração das pessôa, mas num é parpite ruim iguar o qui o sinhô traiz na caxa do peito não, é parpite do mió de bão pra curá essa parpitação sua, essa tar de síndro du pâinc..

O compadre viu sabedoria nas palavras do bom e simples matuto e relaxou um pouco com as belas cantigas que ele tirou do instrumento e da garganta, no seu jeito simples de cantar as palavras. Viu verdade e paz nelas.

No almoço, comeu o melhor almoço que a cidade não poderia oferecer. Bebeu da melhor água que em nenhuma garrafa poderia encontrar para comprar. Ouviu o barulho da água encanada e, surpreso perguntou:

- Mas vocês tem água encanada aqui, no meio do mato?

- Tem sim! Ô qui fiz! Puxei uns cano da cachuêra, no monte atraiz da casa e ela vem suzinha direto pra caxa dágua. Ói o barui dela na caxa dágua... iscuita o som!

- E é tratada? Como?

- Tratada? Tratada sim! Cum muito carinho, pelo mió tratadô das redondêza... Deus... Êle que bota as prantinha na bêra do rio e as pedra e as arêa pra filtrá e dá esse gostim bão de natureza... Na cidade eles fala qui água num tem gosto, e óia qui eles bebe água cum tudo inquanto é produit... o baruio da água na caxa é baruio de paiz pra nóis qui num paga conta e inda tem a mió água pra bebê, pra lavá e pra fazê o di cumê...

- Vamos lá fora cumpadi! Vô te amostrá as ôtra caxa qui nóis tem e qui cura carqué duença! Essas é as caxa das galinha botá, e quando elas canta, nóis sabe qui tem ovo caipira pra nóis cumê, fazê bolo, tirá pintim... Dessas caxa nóis sabe qui quando ôve o cantá alegre das galinha drento, é pruquê o sustento tá garantido...

O compadre ia acompanhando o anfitrião e avaliando quem é que poderia ser mais feliz, ele na cidade com todos os recursos disponíveis, casa boa, carro, supermercado, ou o amigo ali à sua frente, no meio do mato e com tudo tão disponível ao lado...

- Nessas ôtra caxa cumpadi, da donde ocê tá ovino o zum-zum-zum, nóis tira o mel pra consumi, pra vender, pra fazer reméid, pra por nos quitute... O som que sai dessas caxa é o som das abêia trabaiano, tirando das flôr a doçura qui hômi ninhum é capaiz de fazê iguar, mesmo cus mió ricurso qui tivé na cidade... faiz não!

- E vocês não se estressam por viverem no meio do nada, vivendo só com o que tiram daqui?

- Nóis? Nois istressa é cum barui de buzina, cum barui de som daquele povo s’inducação que passa nus carro caquelas côisa dus inferno queles chama de músga, na maior artura do mundo qui inté treme as caxa do peito, e balança as janelas das casa. Nóis istressa é cum assarto de mão armada, adonde o bandido vem tirá da sua caxa registradora o resultado do suor do seu trabaio. Nóis istressa é cum viver injaulado atraiz de grade como se fosse u pió dos bandido im sua própria casa. Nóis istressa é cum criança disnutrida na rua, pidino um cadiquim de cumé e ninguém faiz nada e ela pra num morrê de fome te assarta na rua... Aqui ninguém nega comida pra ninguém, nem água, nem abrigo. Nóis as vezes dá o qui num tem, mar nunca farta, pois Deus repõe no dia seguinte.

O compadre passou o fim de semana ouvindo os pássaros, o radinho, as boas prosas, as modas de viola, aliviando a caixa do peito, aliviando e sintonizando o som do coração com a palpitação de uma alegria renovada. Voltaria para a incivilização da cidade no dia seguinte, mas seria por pouco tempo... Aprendera a ouvir o som da vida!

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Som na caixa

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Charles Lucevan Rodrigues
Enviado por Charles Lucevan Rodrigues em 28/07/2014
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