Blitz 1

Na época em que eu era inocente, puro e besta, com 22 aninhos na moleira, comecei a ter um deslumbre da realidade do mundo fora da minha redoma gorutubana. O destino conspirou para que Janaúba não me coubesse mais. Conheci Eni e com ela parti!

- Você sabe dirigir?...

- Caminhão!

- Serve!

- Você tem habilitação?...

- Não!

- Serve! Tô cansada! Diriji mais de 3000 km! Leva!

E lá fui eu levando eu, ela, os filhos dela, indo pegar outra pessoa em Curral de Dentro, com destino a Rondônia, passando em BH para pegarmos dois gatos siameses e espalhar por lá sacos e sacos de pinha, queijo, requeijão, pequi, umbu e sei-lá-mais-o-quê entre os membros da família dela...

Saímos um dia antes para dormirmos em Porteirinha, sua terra natal, na casa de uma amiga dela, a Zaldir – coitada da Zaldir. A gente tomou conta da casa dela, da piscina... Eni queria amanhecer na feira para tomar café, mas não tinha feira no dia seguinte... Só no sábado! Disse a Zaldir.

Levantamos cedo e pela ausência da feira, partimos com destino a Curral de Dentro, passando por Salinas, antes em Serranópolis. Eu dirigindo, sem habilitação, mas servia!

Subi um morro, desci um morro e quase morro!!! De preocupação? medo?!!!. À nossa frente, coisa de 70 metros adiante, depois que a rua de pedras despinguelava no final de um “S”, já na entrada de Serranópolis uma Blitz – quem faz blitz 7 horas da manhã na entrada de Serranópolis?!!!... Por isso quase morro! Sem habilitação – sabia que não servia porcaria nenhuma apesar de Eni jurar em contrário quando me viu sair com o carro sem dar arrancada brusca: – “saiu macio, sem sacolejar, já tá bom demais... serve!”

Súbito, Eni, ao ver a blitz, sem se afobar, me falou:

- Pára aqui Charles! Aqui! Aqui, ao lado dessa casinha abandonada! E sai do carro...

Parei! E o guarda já vinha na nossa direção, olhando a placa, prancheta de multas na mão...

Ela (batendo palmas diante da casinha abandonada)... “- Zaldir! Ô Zaldir!” É Eni de Nicó, Zaldir.

E eu cá com os meus pensamentos inocentes, puros e bestas: Ué! Outra Zaldir... Essa mulher tem duas amigas chamadas Zaldir nessa região... Acabamos de sair da casa de uma Zaldir e já chegamos na casa de outra... que interessante!

O guarda chegando perto do carro – e de mim logicamente, Eni, toda espalhafatosa, intercepta-o – para a minha salvação – exigindo saber notícias da Zaldir da casinha abandonada!

- ô môço! Cadê a Zaldir...

Ele, ainda mais surpreso que eu: Zaldir... quê Zaldir...

A amiga da minha infância que mora aqui nessa casa... Sabe! Tem trinta anos que eu fui embora daqui para Manaus, olha a placa do carro... e hoje eu resolvi vir fazer uma surpresa pra ela e apresentar meus filhos... Eu era criança quando saí daqui...

E o guarda! Não conheço nenhuma Zaldir, dona. Sou novo aqui, vim transferido de outra cidade. Vou perguntar pro superior! Ele é daqui.

- Capitão, capitão... Cadê a Zaldir... (na realidade não sei se era capitão, tenente, sargento ou comandante – não entendo nada disso e a única patente que eu conheço é a do vaso sanitário – mas pra todos os efeitos fica o superior do policial sendo chamado de capitão).

- Zaldir... Quem é Zaldir...

A amiga dessa dona aqui, Capitão, ela mora nessa casa aqui...

Ih, dona, a mulher que morava aí já se mudou tem muitos anos...

O quê?... E pra onde ela foi?...

- Sei não! Vou perguntar pro superior...

Enquanto o superior procurava pelo superior-superior, nos reunímos com o outro guarda que ficou conosco enquanto a Eni ficava se lastimando copiosamente!

Eu vim de Manaus – AM, do outro lado do país, atravessei tudo só pra vir fazer uma surpresa pra Zaldir, minha amiga do peito, fomos criadas juntas, estudamos juntas, chorei muito quando fui embora, queria levar ela comigo mas ela não podia, e coisa e tal, e tal e coisa e pelo visto é ela que me fez uma surpresa e eu vou acabar voltando sem vê-la...

O superior voltou com o superior-superior! – É dona! Infelizmente as notícias não são boas... A mulher que morava aí, foi embora da cidade!

- OOOOOO QUÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ? E não deixou endereço?...

- Não!

- Zaldir, onde quer que você esteja, sua ingrata, atravessei o país pra te ver e apresentar meus filhos e você some sem deixar endereço... é uma pena!

E os guardas que agora se juntaram à nossa volta interessados nas historias do norte do país desdobraram-se para ensinar onde era a feira, onde podia comprar o melhor queijo e requeijão... Lá no norte ninguem faz desse requeijão daqui....

Nos despedimos, eu me sentei do lado do passageiro, Eni passou para o volante e os guardas

nem pediram documentos e nem perceberam que quem chegara dirigindo era o - ná época, há mais de 20 anos - inabilitado aqui...

Saímos da cidade.

O inocente puro e besta, admirado, aínda pergunta: Que interessante, Eni... você tem duas amigas Zaldir, uma em Porteirinha e outra em Serranópolis?... Que legal!

- Que isso menino!... Só tenho uma amiga Zaldir em Porteirinha!

Ué! E essa outra?...

Essa eu inventei! Vi que a casa estava abandonada e tinha certeza de que não sairia ninguém de lá de dentro para me confrontar.

Quê?.....

Que mais eu podia fazer?... Você não tem habilitação! O guarda vinha te multar ou apreender minha habilitação... Eu tinha que fazer alguma coisa!!!.... vai aprendendo!!! Quando voce nasceu eu já sabia dirigir...

Deixei minha inocência, minha pureza e de ser besta naquela entrada de Serranópolis nas portas de uma casinha abandonada!

Charles Lucevan Rodrigues
Enviado por Charles Lucevan Rodrigues em 25/07/2014
Código do texto: T4895734
Classificação de conteúdo: seguro