DO VIVER SÓ.

Quanto nasceu era noite escura e sem luar e as estrelas até pareciam que estavam brincando de esconde-esconde, pois não se achava uma a brilhar, por menor que fosse. A escuridão da noite só não era maior que a reinante no interior da modesta casa de adobe e coberta de palha de buritis. Uma lamparina teimava em fornecer aquela luz tênue e trêmula. Podia-se ouvir tão somente o gemido da mulher e nada mais. Estava só naquele momento tão sublime e divino. Mas também estava só naquele momento maldito e desgraçado, motivado pelas dores e pelas contrações. O leito da tarimba todo molhado pelo líquido quente que vertia do ventre e ela sem uma alma penada que fosse para lhe ajudar.

Suava e gritava. O desespero já lhe tomara conta fazia muito tempo. As dores começaram ainda tardinha quando os bandos de pássaro preto e araras iniciaram o retorno aos seus ninhos. Eles pelo menos estão em companhia dos outros. E ela só.

Era uma situação incômoda e assustadora. Mas não se entregaria ao desespero. Tinha fibra de uma mulher com alma de aço. Nunca se curvara e nem seria neste momento que iria sucumbir. Uma contração mais forte e quase que nasceu. Lembrou-se do conselho de uma velha parteira. Deitada seria mais difícil. De cócoras a criança parece que enxerga o canal e nasce.

Nasceu. Mas antes teve o cuidado de colocar uma gamela cheia de panos. Com cuidado aparou a criança e com uma faca afiada, cortou o cordão, sem antes tratar de amarrá-lo com um sedenho do rabo de uma égua. Fraca e quase já sem forças conseguiu apanhar a cria e arrastando-se deitou-se na tarimba. O choro demorado foi aos poucos ganhando força e fez eco na solidão da noite. Aos poucos e com muito cuidado colocou os túrgidos seios e sensível mamilo para que o fruto da sua carne pudesse se alimentar. Era sangue transformado em leite. Era amor realizado no rebento macho que nascera. Era a vingança se fazendo real. Era o ódio em forma de mulher acoitada naquelas veredas dos geraes. A fraqueza lhe pegara de tal forma que adormecera e só acordou com o choramingo da criança. Que chorava quem sabe de frio ou de fome, ou para avisar a quem lhe parira que estava viva.

Aos poucos ajeitou-se e saciou a fome e esquentou o frio. Era mês de maio. Os geraes na sua madrugada esfriam. É um frio seco, cortante e penetrante. De madruga é pior ainda. Já fazia o dia de sol e de luz a penetrar pelas fendas das paredes, quando então conseguiu levantar-se e banhar o recém-nascido. Na mesma gamela, depois de limpa, tornou água morna e deitou a criança, para o seu primeiro contato com água externa, pois até então estivera vivendo em uma água interna no útero da mãe. Lavou-o com carinho e com ódio. Enxugou-o com delicadeza e com ânsia de esganá-lo. Era uma situação em que as energias negativas e positivas degladiam-se, tendo por arena o emocional do ser humano. Aos poucos esta luta foi sendo ganha pelo olhar no olhar, pelo toque da pele na pele, do instinto pelo instinto, da morte pela vida. Mas permanecia o ódio corrosivo e cruel. Deitou a criança em uma improvisada cama, sem antes ter o cuidado de retirar os batueras que poderiam causar algum desconforto a sua cria. Aproveitou e atiçou o fogo, para mais água aquecer. Fez o seu banho, banhou-se de cócoras. Asseada. Limpa. Alcançou um naco de carne de frango magro e conseguiu pela vez primeira engolir algo sólido. Pois até o momento sentia muita sede. Era a sede de água para recompor o líquido perdido. Era sede de vingança por tudo que passara.

Os dias passaram e o frio da madrugada fazia com que a fêmea protegesse a cria. E a cria como que sabendo desta proteção materna, dormia o sono inocente. Já a mãe, a qualquer barulho de uma ave noturna ou de um rato que fosse, ficava alerta. Mantinha ao alcance das mãos um facão Guarani, afiado, só de olhar dava medo, e por debaixo do improvisado travesseiro de palha de milho, toda fiada à mão, também dispunha de um bem tratado e carregado 38 cano longo.

Cresceram ali. Ela com sua resignação de viver retirada de tudo e de todos. Não buscava contato com alma viva que fosse. Sua ligação com o mundo era o filho e um velho homem cego de um olho e cocho da perna direita, morde de um coice de um jumento. Morava o estranho velho em uma vereda, lá pra bandas do Mato Preto. Panhava a produção que ela conseguia obter. Ora era queijo de vaca de cria, ora era doce de buritis, manteiga de buritis, esteira e aparadores. Quando a terneirada era desmadada, separava as terneiras mais fortes e o resto vendia. E assim vivia na dependência do ancião. Levava a sua produção, trazia a sua necessidade. Pano, linha, querosene, banha para supri quando faltava. Não tinha luxo. Da natureza que vivia tirava o natural da vida necessária para os dois.

Os anos passaram com a mesma velocidade com que crescia o filho, assim como cresciam os cabelos brancos da mãe solitária, que davam uma coloração linda àquela cabeça, com a mistura dos fios loiros com fios de cabelos brancos. A sua feição queimada pelo sol e curtida pelo vento dava-lhe ainda mais uma formosura indescritível. O filho agora com seus anos já passados, não tinha mais a companhia do velho ermitão. Aprendera com ele as manhas da venda dos produtos e a astúcia necessária para não ser logrado. Discreto e de pouca fala, quase ninguém o notava. Entrava no povoado, vendia a sua produção e comprava o que era necessário. O que não vendia trazia de volta. Nunca ficou devendo e ninguém a ele. Aos poucos astucio-se na empreitada de ver como era o mercado local. Conhecera e cativara alguns dos comerciantes. Pouco ou nada dele sabiam. Uns até diziam que fora criado pelo velho dos geraes, quando uma mulher encantada surgiu de uma lagoa e subiu para o céu. E como não podia levar o filho, deu para ele criar. Crendices, não mais que crendices.

Em uma noite de lua cheia, com o piado triste da coruja.

A velha mãe agora com os anos lhes pesando, deitou-se para nunca mais se levantar. Deixara a vida solitária de si mesma e se foi para a eternidade. Só e cumprindo o último desejo enterrou a mãe em cova rasa. Era ele e ela. Com ela enterrada foram-se as mágoas, o ódio, a tristeza e a certeza de que a sua vontade última seria atendida. Vendeu a propriedade. Ajuntou seus cacos velhos e levou consigo a montaria que lhe assegurava a chegada na cidade grande. De pouca ou quase nenhuma experiência, empregou-se em uma pequena propriedade nas proximidades da cidade. Aos poucos foi assuntando a respeito de quem era quem. Encontrou as repostas para suas perguntas. Em uma fazenda não muito longe, empregou-se como domador de cavalos e boiadeiro. Já homem feito, alto, trazia no rosto a estampa da mãe. Cuspido e escarrado. Esquio e solerte ganhou a confiança do administrador da fazenda. Aos poucos aproximou-se dos patrões.

Na primeira conversa, o patrão sentiu-se como que falando com alguém que conhecia de outras paragens. A filha, moça esbelta e esguia, tinha a candura de santinha de igreja. A patroa, senhora moldada a tipo matrona, com os cabelos sempre puxados para trás, mais parecendo um rabo de égua e não de cavalo, pouco conversava. Não encarava e nem sustentava um olhar mais demorado, parecia desconfiar de tudo e de todos. Mulher dos seus 45 anos, na plenitude da vida.

Um dia, todos os funcionários convidados que foram para um festejo em homenagem ao padroeiro da fazenda. Lá estava a vizinhança, o frei franciscano e os convidados da cidade. Dançaram, comeram, beberam, conversaram, e tudo corria nos conformes de acordo com a tradição e o respeito entre as famílias e os convidados. Ninguém notou, mas duas pessoas não se faziam presentes por alguns momentos. O rapaz recém-empregado e a patroa. Também pudera, com tanta gente e tantos afazeres, não daria para se notar a ausência deste ou daquele ser vivente. A noite fria e enluarada iluminava aquelas duas pessoas que se abraçavam e trocavam carícias, como se fossem antigos amantes. Ela experiente. Ele a vez primeira, agindo mais por instinto que outra coisa. Este fora o primeiro dos furtivos encontros. Daquele momento em diante a vida parece que renascera naquela mulher. Fato este notado pela filha e pelo marido. A disposição, o novo penteado, o decote, a maquilagem e até a disposição de sair da fazenda para ir às compras na cidade.

Um dia, acordou assustada. Sonhara que estava grávida. Não era sonho, era pesadelo real. Ao marido contara tal sonho. Ele por sua vez, não acreditava naquele fato. Não que não fosse dado ao fato, mas assimilou dias após a real situação. A filha única com 25 anos e solteira, e agora um filho temporão? Todos estavam radiantes. O rapaz agora, não mais se aproximava da patroa. E veio o acontecido em duas partes. O nascimento do filho macho, coisa que sempre o patrão esperara. A festa do batizado. Um pequeno envelope estava sobre a soleira da porta, escrito com letras caprichadas e alinhadas, e trazia uma mensagem que mudaria o rumo das coisas. No seu interior uma carta com duas folhas, já amarelecidas mas ainda bem conservadas. Dizia no final: Este filho que agora tens, não é teu. É filho do meu filho, que você me fez e me abandonou. Lembra-se? Você e seus pais me expulsaram da sua fazenda, me chamando de leviana. Eu era moça ingênua e você moço escolado. Agora pago com outra moeda. O nosso filho do qual você nunca quis saber da sua existência, agora é pai do filho da sua mulher.

Na estrada montado em um cavalo Mangalarga-Marchador, levantava uma tênue poeira, em uma manhã ensolarada, seguia o jovem nascido do ódio, da raiva e do desprezo. Na porta jazia o corpo do patrão-fazendeiro, com uma carta explicativa do porquê da alegria da sua mulher. Vingança? Quem sabe...

ROMÃO MIRANDA VIDAL
Enviado por ROMÃO MIRANDA VIDAL em 15/05/2007
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