COMERAM TUZINHO NO MATAGAL
Tuzinho era um garoto esperto e escorregadio, desses que as pessoas entendidas em Psicologia rotulavam de “hiperativo”. Não parava quieto um minuto e sua avó costumava dizer que tinha “bicho carpinteiro”. Era filho de pais emigrantes, de um quilombo do Nordeste de Goiás, que acabaram encontrando guarida no trabalho semi-escravo, num arremedo de fazenda lá pelas margens da GO-118.
Por volta dos treze anos, o menino agitava a área desde as primeiras horas do dia até o momento em que seus pais resolviam apagar o candeeiro, cuja fuligem cuidava de enegrecer as paredes de pau a pique e o teto de palmas de buriti. A casa mal passava de uma choupana e, nos seus três diminutos cômodos, abrigava o casal, três filhos e mais dois cães pulguentos.
Mal se punha de pé, de manhãzinha, já corria pelo terreiro espantando as galinhas, patos e marrecos, zombando da cabrita parida que, mal ajambrada, tentava fugir se enroscando nas próprias tetas pesadas, cheias de leite.
Engolia algum de comer que a mãe já havia preparado para o pai. Esse já se adiantara na faina diária e tratava de passar o arado para a semeadura do terreno. As terras depauperadas mal produziam milho suficiente para as necessidades dos habitantes e dos animais da pequena propriedade e era urgente deixar tudo pronto para a chuva da estação.
Tuzinho era o apelido carinhoso que Juvência, a mãe, lhe arranjara. Embevecida com nome do filho do proprietário da fazendola, ao batizar o menino, diante do padre e de N. Senhora da Ajuda, deu-lhe o nome de Artur. Daí para “Tuzinho”, foi um tantinho de nada.
Nandinho, o irmão mais novo, ainda aprendendo a falar, inventou de chamar de “Tuzinho”, o irmão mais velho e pronto! Pegou o apelido! Juvência gostou da idéia e nunca mais chamou o filho de Artur. Era Tuzinho pra cá e Tuzinho pra lá, de segunda a domingo...
O menino cresceu... Com o tempo tornou-se conhecedor exímio das cercanias da habitação e costumava adentrar pelos buritizais à caça de alguma curruíra distraída, trancafiada em algum dos alçapões de bambu que sabia fazer, tão bem.
Quando não era isso, mal escapava das vistas dos adultos, lá estava o pestinha azucrinando um porco enorme que dormitava na lama do chiqueiro. O bicho era tão gordo que fazia um enorme esforço para levantar-se do chão. Pelo que se dizia, deveria estar com uns trezentos e poucos quilos.
Tuzinho adorava implicar com o pobre do suíno enfiando-lhe no focinho grãos de milho para ver o animal espirrando e atirando longe o corpo estranho que lhe afligia ou fazia cócegas. O diabrete se esbodegava de tanto rir, a ponto de fazer xixi nas calças. Um dia, escorregou na imundície do curral caindo próximo à boca do animal. Esse, incomodado vingou-se com uma bela bocada no calcanhar, arrancando um pedaço de carne.
A mordida do porco produziu no garoto uma bela infecção que quase lhe custa o pé inteiro. Mesmo assim, com muito custo, o médico da currutela conseguira dar um jeito e salvando o que pode.
Desde então, Tuzinho passou a andar mancando da perna direita. A ausência do calcanhar lhe impedia de tocar o solo com o peso do corpo no pé deformado. Assim, aprendeu a se virar com um pé e meio... Pela insana ocorrência jurou, de pés juntos, ainda iria aprontar uma vingança para aquele porco filho da puta.
Passado o momento crítico do episódio, o traquinas, a cada dia, armazenava mais um pouco de arteirices ao seu dispor usando tudo o que podia para aprontar, aqui e ali, umas tantas e quantas...
O rosto do menino se enchia de felicidade quando chegava o mês de setembro e, no meio dele, despencava a “chuva do caju”, àgua benfazeja que os céus premiavam a terra e os homens do cerrado amenizando a agrura da seca, sob o Sol causticante.
Aí, bem de manhãzinha, corria para as matas do cerrado à cata dos deliciosos cajuzinhos com os quais se empanturrava a não mais valer. Voltava para casa com as sacolas plásticas cheias de frutas maduras e perfumadas com as quais a mãe lhe preparava sucos e doces. Era uma verdadeira festa para ele e para todos, aquela fartura.
O porco, que a essa altura dos acontecimentos, já estava bem mais gordo e pesado, sequer desconfiava da vingança que Tuzinho urdia em silêncio e que estava quase na hora de se concretizar.
Um belo dia passou boa parte da manhã catando as frutas. Ao retornar à casa passou no fundão do quintal e acomodou-se, calmamente, ao lado de uma pimenteira malagueta. Pacientemente, com um estilete de bambu, furava os cajuzinhos, um por um, e enfiava no buraco, uma pimenta daquelas bem vermelhinhas.
Quando já havia feito a operação, em todos os cajuzinhos, saiu assoviando em direção ao chiqueiro. Como sempre, lá estava o Chulipa esparramado na lama quando Tuzinho chegou com seus cajus. Sem se dar ao luxo de entrar pela portinhola tratou de jogar, dentro do cocho, todo o conteúdo de duas sacolas plásticas do mercadinho do seu Abdias.
Mal o porco viu aquele manjar, tratou de sair o seu repouso e, com muita dificuldade, colocou-se de pé sobre as quatro pernas roliças e grossas.
Roncando de felicidade, o bicho atirou-se com o focinho inteiro naquela maravilha e já havia devorado mais da metade do conteúdo quando deu uma parada. Olhou para um lado, olhou para o outro, deu uns espirros, uns dois ou três roncos esquisitos, sacudiu a cabeçorra, o rabo e engatou uma marcha à ré...
Os olhos vermelhos como brasas, língua pendurada babando por todos os cantos da boca mostravam o desespero do animal com a ardência que, a essa altura, já estava lhe infernizando caminho da comida desde a goela até o estômago. Desatou a grunhir e a pular no chiqueiro, espalhando lama para todo o canto.
Tuzinho já não aguentava de tanto rir... Passou uma bela meia hora apreciando a tortura do animal a troco do aleijão que lhe presenteara tempos atrás. Assim, ficou vingado...
Desesperado, com as entranhas em fogo, o animal estrebuchou e, num rompante de desespero, atirou-se contra uma das paredes do quadrilátero em que sempre viveu confinado.
É de se compreender que o pobre animal, por ser irracional, jamais poderia associar o peso do seu corpanzil a uma poderosa arma de que podia se valer. O desespero fez com que, inconscientemente, se transformasse em um poderoso aríete. O impacto contra a parede, de adobe, cedeu fragmentando o obstáculo e abrindo um enorme rombo por onde o furioso disparou chiqueiro à fora...
Tuzinho que a tudo assistira, imóvel, com os olhos esbugalhados, tentou um arremedo de corrida sem sucesso. As pernas que já eram destreinadas, ao simples andar, mancavam por falta de parte de um pedaço de calcanhar.
Foi quando o porco, após correr suas banhas por alguns metros, parou bufando. Fez meia volta baixou a cabeça e disparou em direção ao rapaz.
Nunca, durante toda a vida, Tuzinho havia dado atenção às duas enormes presas que saíam da mandíbula inferior do bicho e ultrapassavam o diâmetro do focinho. Era algo verdadeiramente assustador que parecia aumentar de tamanho no animal enfurecido.
Antes que conseguisse abrir a boca para berrar por alguém, num inútil pedido de socorro, de uma só bocada, o porco cravou-lhe os dentes arrancando um bom naco de bunda. Com o pedaço de carne pendurado nas presas, o animal disparou embrenhando-se pelo mato adentro. Ninguém nunca mais viu ou ouviu falar do roncador.
Mas, como tudo o que acontece, por mais escondido que seja sempre aparece, na boca do povo, até hoje estão procurando o filho-da-mãe que andou espalhando, pelo vilarejo, que “um tal de Chulipa, comeu a bunda do Tuzinho, e se mandou lá pras bandas do matagal”...
Amelius
Sobradinho-DF – 14/07/2014