298-MARMITAS VOADORAS -

Ninguém mais sabia o primeiro nome de Batatolina. Nem mesmo os velhos senhores que se reuniam todas as manhãs na Pharmácia Progresso.Uns acham que seria Neca, outros pensam que teria sido chamado, há muitos anos, de Juca.

— É um antigo professor de Ponte Queimada. Conheci ele quando estudei no grupo escolar.

— Não, não, aquele ficou louco furioso, foi para o hospício de Barbacena. O Batatolina veio de outras bandas.

Se o chamavam de Batatolina, era porque ele mesmo usava o termo quando se dirigia a qualquer um, para fazer um pedido:

— Ei, Batatolina, me dá um trocado. — A voz era profunda e cava.

— Ô, Batatolina, me paga um sorvete. — O tom rouco e atemorizante.

Era um tipo que merecia os comentários e as preocupações dos veneráveis senhores de cabeça branca. Alto e magro, sempre descalço, usava as roupas sem lavar até serem trocadas por outras. Como nunca conseguia calças compridas bastantes para seu porte, suas canelas estavam sempre à mostra. Na cabeça, um chapéu de feltro preto, jamais substituído. Uma figura impressionante tanto pelo porte quanto pela maneira desbragada de andar.

Vivia zanzando pela cidade, não tinha morada e ora dormia sob o viaduto da Rodovia do Café, ora debaixo da Ponte dos Amores. Viveu muito tempo sob a marquise do estádio do campo de futebol, até que o novo presidente da agremiação implicou com sua presença no local. Era de paz e não brigava com ninguém. Arranjava-se sem se queixar.

Despejado pela enésima vez, sem preconceito nem medo, passou a morar no cemitério. No único mausoléu, pomposa edificação, agora sinistra pelo abandono de muitos anos. Entrava todas as noites, pulando o muro, rente ao qual um velho cipreste lhe facilitava o acesso. E saía, pela mesma via, bem de manhãzinha, antes da chegada do coveiro e seus auxiliares.

O Cemitério Municipal de Serra Bela era pequeno mas bem cuidado. Cercado de muro pelas laterais e fundo, tinha na frente um gradil que permitia aos transeuntes divisar os túmulos enfileirados e limpos e, no fundo, o mausoléu da família Matoso Soares. Apenas o mausoléu destoava da limpeza, pois da ilustre família não restara sobrevivente que mantivesse a tradição de cuidar do jazigo perpétuo. Estava negro pela fuligem do tempo e o pequeno portão que dava acesso ao seu interior dependurava-se sobre as dobradiças enferrujadas e quebradas.

Defronte à grade de metal, separado apenas por estreita rua, a Praça da Saudade, com árvores centenárias, era sombria e erma, harmonizando-se com o próprio cemitério.

Na contra-esquina do campo santo, uma venda de duas portas: o boteco do Seu Timóteo. Ao lado, passava a estrada que levava às diversas fazendas do Espraiado, uma das regiões mais ricas do município. Estrada movimentada, principalmente na ocasião da colheita do café. De manhã, centenas de bóias-frias passavam por ali, levando em seus embornais as marmitas com o almoço, garrafas de café e o necessário para passar o dia na lida do campo. Alguns entravam na venda do seu Timóteo para comprar um pedaço de fumo, encher a meia-garrafa de pinga ou simplesmente para uma conversinha rápida. De tal forma que na frente da venda, em determinados momentos da manhãzinha, vinte, trinta pessoas estavam batendo papo, encontrando-se e despedindo-se. Muitos se sentavam na calçada ou se encostavam nas grades do cemitério.

A colheita do café exigia muita gente, naqueles tempos em que nada era mecanizado. Os trabalhadores madrugavam. Quando passavam pela venda, ainda estava escuro, a neblina retardando o alvorecer. Muitos demoravam-se pelas vizinhanças da venda. A névoa, cobrindo o cemitério e escondendo as árvores da praça, além de fazer os bóias-frias tiritar, dava um toque de mistério ao local. Foi então que se fez ouvir uma voz soturna, vinda das campas, ao mesmo tempo em que um vulto fantasmagórico dependurava-se na grade, pelo lado de dentro do cemitério:

— Ô Batatolina, quantas horas são?

É o próprio dono da venda quem finaliza:

— Foi um fuzuê dos inferno. Só se via gente correndo e marmita voando.

ANTONIO ROQUE GOBBO =

BELO HORIZONTE, 20 DE AGOSTO DE 2004

CONTO # 298 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 14/07/2014
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