295-DORMINDO NO PAIOL
Abdul era mascate do interior. Percorria a pé, carregando sua mala sobre as costas, sítios e fazendas da região do Triângulo e beiradas do Rio Grande. Naquele dia havia caminhado umas dez léguas, visitado duas fazendas e feito bom negócio. Ao entardecer, contudo, o tempo deu em virar, o sol desapareceu por trás de nuvens gordas de água que ameaçavam cair a qualquer instante.
Apertando o pé, conseguiu chegar a outro sítio bem situado, na falda do Morro Vermelho. A casa se destacava no meio da pastaria sem fim, contra o fundo da montanha altaneira. Quando subiu os poucos degraus da entrada e adentrou-se pela varanda, os primeiros pingos de chuva, verdadeiros patacões d’água começaram a cair.
— Ô da Casa! Dá Licença?
Um senhor idoso na aparência chegou até à porta, trazendo uma lamparina, que a noite já havia se instalado.
— Entra, moço. — Ao ver Abdul já sob o alpendre, reforçou o convite: — Tome assento.
O mascate arriou a mala ali no chão da varanda e sentou-se no banco tosco.
— Sou Abdul ser mascateio por essas bandas. É a primeira vez que chego no seu sítio.
— Uai, gente, muito prazer. Nóis é gente simpres. Num arrepara. Entra aqui pra sala. Nicota (grita para o interior da casa) vem ver as novidade do Seu Abdula.
Chega Nicota. Examina as bugigangas, escolhe umas coisinha, tipo linhas, agulhas, uma chita e renda para gola do vestido.
— Com esse tempo, não vou poder continuar a viagem.... Será que posso dormir por aqui?
— Ara, gente, mais de certo que sim. Antes vai cumê quarqué coisa, que não faiz bem drumi de barriga vazia.
Abdul janta com apetite do feijão tropeiro requentado e um ovo estrelado.
— Pra drumi, nóis só tem um quartinho dos fundo, onde dorme a nenê. O sior pode ficar lá.
Raciocínio rápido, Abdul pensa:
Eu, dormir com nenê? Mais de jeito nenhum. Sei lá se essa criança chora de noite, fica amolando.
— Num precisa, acomodo em qualquer canto. — Falou Abdul.
— Bem, se o sr. não quer memo durmi no quartinho da nenê, pode se arranchá no paiol. Lá tem muito pelego, dá pra fazer boa cama.
Abdula revirou a noite inteira sobre as palhas de milho,sacos de cereais e pelegos de montarias. Foi uma noite de cão, enquanto lá fora a chuva caía a cântaros. Entre um cochilo e outro, ouvia o ribombar dos trovões e notando os clarões, ainda que de olhos fechados, dos relâmpagos e faíscas. Quando o temporal amainou, pela madrugada, Abdul já ia entrando num sono bom quando foi despertado pelo cocoricó do galo e pelos piados das galinhas e pintinhos, que se aninhavam debaixo do paiol.
O disgraça pelada!! Kifsa!
No dia seguinte levanta bem cedinho e vai direto para a bica d´água, que ouvia cair nos fundos da casa. Estava já nos arremates, a cara lavada e passando a mão molhada pelos cabelos, quando viu chegando uma bela moça. Vinha com uma moringa apanhar água.. Morena bem conformada, pernas roliças aparecendo sob a camisola curta, peitinhos estufados, lindo rosto emoldurado pelos cabelos desalinhados, olhos negros como duas jabuticabas e um sorriso de mel nos lábios carnudos.
Também parecia ter se levantado há pouco: os cabelos sem pentear, desciam, compridos e negros, por sobre os ombros.
— Oi! — Ela diz, candidamente, aproximando-se para pegar água. Os lábios entreabertos deixam ver dentes branquíssimos, destacando-se naquela morenice brejeira.
— Bom dia! — Abdul fica trêmulo de surpresa ante tão linda visão. Não tem mais palavras.
— Eu sou a Nenê. E o senhor, quem é?
Surpreso ante a revelação e já sentindo um profundo desgosto por ter se recusado a dormir no quartinho “com a nenê”, responde malcriadamente:
— Eu sou a besta do Abdul que não quis dormir no quartinho da nenê! Arrakidina!
Antonio rOQUE Gobbo —
Belo Horizonte, 8 de agosto de 2004 —
Contos # 295 da série MILISTÓRIA