ACORDOU. EH! EH!

Acordara depois de uma noite de sono reparadora. Dormira tranqüilo e sossegado. Após ter feito amor e sexo ou sexo e amor? Melhor os dois. Foram momentos gostosos, íntimos, prazerosos e cheios de intimidades, plenos de amor. Quando virou-se para se aconchegar nas coxas da mulher, nada encontrou. Abriu os olhos, ainda era escuro. Apanhou a binga e triscou uma, duas, e na terceira vez acendeu o pavio. Acendeu a lamparina e não encontrou a mulher na cama. Estranhou esta situação, pois sempre era ele quem se levantava por primeiro.

Algo estranho nesta manhã. Ainda era escuro, podia-se ouvir longe o cantar de um galo, mais longe outro galo respondendo, mas o dia estava por nascer. Melhor ainda, estava a noite indo dormir no seu colchão de estrela e o dia vinha aparecendo com o seu leito dourado do sol.

Vestiu a calça, calçou a botina e saiu pela casa à procura da mulher. Na cozinha, tudo escuro e fogo não havia sido aceso no fogão à lenha. No banheiro, ninguém. Tentou o trinco da porta. Fechado. Janelas também. Foi para a sala, para os dois quartos, agora vazios. Não estava lá. Experimentou a porta da varanda do lado, fechada. A porta da frente. Aberta.

Um estranho arrepio lhe correu o espinhaço. Deu até um tremelico. Parou e pensou. Mas pensar no quê, naquela hora dos acontecimentos. Correu para a cozinha, abriu a lata de biscoitos. Lá estavam o lenço de linho bordado em ponto inglês e o maço de dinheiro. Tudo amarradinho. Voltou para o quarto, abriu o guarda-roupa e tudo estava lá. No baú aos pés da cama, nada havido mudado. Começou a sentir um calafrio. Uma forma de aperto no peito.

O que teria acontecido afinal? Sempre se deram tão bem. Um sabia o desejo do outro. Era como nos primeiros anos de casados. Nos dia de chuva, ficavam na cama e se amavam, se beijavam como dois adolescentes descobrindo o prazer de dois corpos, cheios de energia e de amor para dar. Lembrara como foram difíceis os primeiros anos. Comprara uma gleba de terra com o dinheiro ganho da herança do pai. Era filho único e órfão de mãe. Era uma área de 400 alqueires. Começaram a construir a casa de madeira, pequena. Tinha 2 quartos, sala, cozinha, dispensa e banheiro. Um luxo para a época, um banheiro no corpo da casa. Começara a derrubada da mataria aos poucos. Tinha um extremo cuidado. Se derrubava 1 alqueire, dois ficavam intactos. Uns até o chamavam de louco, por conservar tantas árvores. Mas assim ia tocando a vida. Das derrubadas vinha o alimento. Era abóbora, mandioca, feijão, arroz de brejo, milho, batata doce e nas leiras a mulher plantava tomate, pepino, abobrinha italiana e assim equilibravam as despesas, afora a horta. No mangueirão havia sempre muitos porcos. Tinha 10 porcas caruncho, 5 porcas nilo canastra e 4 porcas piaú. Como reprodutor tinha 3 machos orelha de colher. Resultado. Sempre tinha boa banha e muita fartura em carne de porco. Na dispensa, as tinas de madeira sempre estavam com carne de porco frita conservada na banha. Pendurados, salames, toucinhos e costelas defumadas. Nas gamelas mantinha os salgados. Construíra um monjolo que lhe garantia o arroz descascado e quirelinha de milho para comer com carne de porco e couve cortadinha de fino, refogada na banha e sal. Foram anos de luta. Foram anos de amor intenso. Aos domingos depois do almoço, a sobremesa era um do outro e outro de um. Que ninguém se atrevesse a visitá-los nos domingos após o almoço, pois poderiam ouvir os risos, os gemidos e até algumas coisas que estranhos intrometidos não deviam ouvir. Se bem que visitas era algo muito raro.

Após 5 anos de casados, nascera o primeiro fruto de uma tarde e de uma noite de amor. Foi algo de descuido da mulher que se atrapalhara nas regras e na lua, assim como fora algo de muito amor e de paixão, mais tesão que outra coisa. Mas nasceu a filha, linda como a mãe. Parto de parteira, apalavrada há mais de mês. Passaram-se dois anos e de novo, nasce mais um rebento. Fruto de uma tarde de sol, na beira do rio. A areia branca, a água quente, o sol quente, o sangue quente e os dois quentes. Nascera desta feita um menino. Forte no primeiro choro, guloso na primeira mamada. Agora a casa já era outra. A velha desmontaram e a transformaram em um paiol. E o filme ou as lembranças brotavam de forma intensa e imensa. Por onde andaria a mulher?

Comprara mais duas áreas, não muito distantes da primeira. Uma com 280 alqueires e com benfeitorias e terra para lavoura solteira e outra de 189 alqueires sem benfeitorias, só pasto. Esta última era resultado de uma divisão de uma fazenda maior. Os filhos foram morar na cidade, na casa dos padrinhos. Primário, ginásio e científico. Agora as tardes de domingo ficavam um tanto comprometidas. Nos primeiro meses, iam praticamente todos os finais de semana para visitar os filhos. Depois resolveram ir uma vez por mês. E as tardes de domingo após o almoço um era a sobremesa do outro. Os filhos só apareciam nas férias. Um dia a menina moça falou que ia para capital. Estudar na universidade. E foi. Formou-se em Pedagogia. Queria ser professora. Anos depois foi a vez do filho. Foi estudar Administração de Empresas. O casal não se preocupava com a vida dos filhos na capital. Dinheiro sempre que necessário. Tinha feito uma poupança renovável. Das áreas onde deixara a mata intacta, retirava com cuidado esmerado palanques para cerca. Todo o ano lenhava algo como umas 1.000 dúzias de palanques. A sua mania de replantar na proporção de 1 por 10 lhe rendera agora uma poupança considerável. Mantinha um viveiro com mudas de ipê, angico, imbuia branca e conseguira as duras penas fazer mudas de grápia, agora plantava também um tal de "calípio", redondinho que só. Além é lógico da venda de 4 a 6 boiadas por ano. Em resumo, tinha uma vida capitalizada de forma muito precisa. Mas apesar de tudo isto, não tinha carro. Não aprendera a dirigir. Não comprara camioneta e nem pick-up como o vizinho fizera. A luz elétrica não havia chegado por aquelas bandas, razão pela qual usava lamparina e lampião a querosene. E foi com este lampião que continuou a procurar a mulher pela casa.

Nos quartos dos filhos, não estava. Olhou ainda na parede, dependurado um quadro com dois anjos guardando duas crianças. Era presente de um ex-padre que viera lhe pedir guarida. Tinha fugido com a filha do delegado, ou roubado a filha do homem que mandava prender e soltar. Os dois enamorados e agora um excomungado, tiveram todo o apoio e respeito do casal. Com o ex-padre aprendera a conservar os palanques de cerca, com uma mistura de óleo e um produto que fedia pra chuchu. Com a filha do delegado, a mulher aprendera a fazer pãezinhos de milho, pão de goma e de queijo, assim como fazer polvilho azedo. Era moça prendada. Viviam agora com os dois filhos e mais um casal. Moravam na casa em um dos quartos. A moça ajudava nas coisas da casa. O padre fujão, descendente de alemães, sabia muita coisa. Inclusive fabricara uma roda d'água que fazia funcionar todo um sistema de moagem de milho, trigo e ainda movimentava a moenda de cana. Conseguira fazer uma serpentina que provia de água quente a cozinha e o banheiro. Afora o casal que hospedava o jovem e fugitivo casal, só um casal de empregados sabia da sua existência. Mas este casal de empregados morava nos fundos da fazenda.

E então um belo dia, um jipe apareceu na frente da porteira. Era o delegado com mais dois meganhas. Estavam procurando o padre desordeiro e desecaminhador de menina-moça e por razão direta a menina-moça desecaminhada e agora já deflorada. Recebeu o delegado e os acompanhantes, ouviu o seu contar da filha roubada. A mulher lhe ofereceu um café, adoçado com açúcar mascavo, com pão de milho. Pão de milho? O delegado havia falado dos predicados da filha, inclusive do pão de milho. Seria como que denunciar a presença dos jovens fugitivos. Mudou. Café e bolo de goma.Também não. Então servir o quê? Batata doce com melado. Manjar dos deuses. E o delegado a perguntar. De repente, a esposa levantou-se e perguntou ao delegado. O senhor não gostaria de visitar a nossa casa? E foi mostrando tudo, o quarto de casal, o quarto da menina, do menino, a dispensa, o banheiro, a cozinha. Lá fora, ficava o paiol. Vamos dar uma chegada, lá?, perguntou ao delegado. Que vendo tanta espontaneidade dispensou tal visita e foi-se certo de que por ali não havia passado quem andava procurando. Foi-se, mas sem antes pedir umas batatas e melado.

No paiol, dois corações batiam na goela. Na mesma noite 4 montarias foram preparadas. Duas devidamente apetrechadas e mais duas de troca. A benção e os apertos de mão e abraços de gratidão. A benção era válida? Lógico que era. Quem foi padre, sempre padre será. Mas da mulher, nada. O dia já visto. O lampião não era mais necessário. Não tomou café. Lavou o rosto, escovou os dentes. Saiu pela porta dos fundos. Olhou em volta e nada. Como iria justificar aos filhos o desaparecimento da mãe deles? O filho era muito apegado a mãe. Coisa de louco doido. Tanto que era verdade, que resolvera deixar a capital e comprar um sítio perto da fazenda, onde recebia todo o final da semana, um bando de gente. Que vinha passar um tal de "final de semana". Se deliciavam nas 3 cachoeiras, nas corredeiras, nos poços de água funda. Na pesca de lambaris e de jundiás. Andavam de cavalo. Não andavam à cavalo. Não sabiam esta ciência.

A filha agora formada era dona de uma escola. Do jardim até o ginásio. Coisa moderna. Coisa também que o pai não aprendera era ler. Sabia fazer conta de somar e diminuir. Para somar só de número "impilhadinho um em cima do outro" e para diminuir era só desempilhar, e tudo estava resolvido. Abriu o portão do jardim e nenhum sinal. O cachorro perdigueiro lançou um olhar preguiçoso e continuou a dormir. Já sentia um aperto no peito, uma angústia na alma. Um medo não sabido e nunca havido. Como viver sem ela? Sem os seus carinhos, seus beijos, seus abraços? Como dormir sem dormir agarradinho? Como fingir que esquecera a toalha de banho e puxá-la para debaixo do chuveiro, com roupa e tudo e depois os dois nus se esfregarem e se amarem debaixo daquela água quente, que graças ao padre fujão lhes proporcionava este conforto, nos momentos de amor e loucura?

Patrão! Oh, patrão! Corre, home de Deus. Corre cristão. Que foi sôo? Acode patrão, gritava a mulher do empregado. Vem cá ver. É a patroa, que está no paiol, deitada em cima do feno. Morta? Num sei. Branco, frio, suado, quase mijado nas calças. Lá estava ela. De camisola de flanela azul e amarela. Dormia. Dormia como uma rainha. Aos poucos a chamou e nada. Nos braços a carregou para casa. Continuava a dormir. Corre no vizinho e manda chamar o médico, que é coisa de urgência. Assim que a mulher do caseiro saiu e ficou só no quarto com a mulher, teve o cuidado de lhe vestir uma calcinha, pois ainda estava sem após aquela noite de amor. O médico chegou. Examinou. Perguntou. Assuntou. Não receitou. Olhou. Fez que ia falar e não falou. Chamou o marido de lado e lhe confidenciou. A mulher, dona Izildinha (nome trocado) passara a sofrer de sonambulismo. Quem boa notícia, não é meu amigo...?

ROMÃO MIRANDA VIDAL
Enviado por ROMÃO MIRANDA VIDAL em 14/05/2007
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