Ainda Sem Nome

Os primeiros raios de sol mostram-se ainda tímidos. Da janela do segundo andar, um choro ecoa pela rua ainda deserta. “É um menino”, dizem os médicos. Na sala de espera, o pai encontra-se em um frenesi. A mãe, aliviada ao escutar o choro, espera pela criança, pronta para afagá-la. Mas algo de extrema importância ainda lhes faltava: os pais não haviam decidido qual seria o nome do bebê. Não que tenham lhe faltado oportunidades para tanto. Aliás, foram muitas as discussões a respeito. Entretanto, não pense que foi a dúvida de qual nome escolher o motivo para tantas discussões. Não, não. Fora algo de maior complexidade. Para o pai, qualquer nome bastava. Nome era só nome e tanto assim se fazia. Mas para mãe... Não! O nome definia uma pessoa. E para ela não era justo que se escolhesse o nome assim que uma criança nascesse, pois não há como profetizar a personalidade de um recém-nascido.

Posto que não haviam decidido nada, a criança fora registada “Ainda Sem Nome”. De início, era um tanto estranho chamá-la assim. Mas, como para o pai o nome tanto se fazia e para mãe, era justo que se conhecesse a personalidade da criança antes de determinar um nome, Ainda Sem Nome foi crescendo assim. Nas escolas, era sempre motivo de chacota para as outras crianças, que caçoavam dele por não possuir um nome. Outros achavam um absurdo e não entendiam como certos pais podiam ser tão negligentes. Nas fichas de registro, nunca sabiam ao certo qual era o sexo da criança, pois não havia como definir masculino ou feminino para um alguém Ainda Sem Nome. Quando precisavam determinar um artigo definido antes do nome, optavam sempre por colocar o substantivo criança ou pessoa à frente. No fim das contas, o menino Ainda Sem Nome era sempre designado como a criança sem nome.

Não pense, no entanto, que Ainda Sem Nome se importasse com as implicâncias nas escolas, tampouco os pais. Para eles, não se tratava de algo que agora denominavam com bulying, pois não era. O pai, especialmente, achava que as pessoas tinham um impulso enorme de nomear coisas, enquanto essa era apenas uma situação comum que todas as crianças passavam em suas vidas. Assim sendo, Ainda Sem Nome viveu sua infância com tamanha naturalidade. Mas então surgiu a adolescência. Não que o garoto se importasse com as implicâncias na escola, as quais se tornavam ainda mais insistentes e... Pesadas, pois quanto maior a idade, maior o fardo. O problema era outro: Ainda Sem Nome havia se apaixonado por uma garota e não gostaria de continuar ainda sem nome, posto que isso o designava ainda sem personalidade. Como as várias vezes que ouvira boca de sua própria mãe, acreditava que mulheres não gostavam de homens sem personalidade. Tratou logo que teria uma conversa séria com a mãe e que, por fim, lhe definiriam um nome.

Naquela noite, a discussão era calorosa entre mãe e filho. O pai, como sempre, achava que qualquer nome era nome e não quis saber da discussão. Em um papel meio amassado, mãe e filho tentavam, insistentemente, anotar as qualidades e defeitos do garoto. Mas não se chegava à conclusão alguma. Para a mãe, o filho só exalava qualidades, mas como dizem por aí, opinião de mãe não vale. E o garoto logo descobriu que julgar a si mesmo era a tarefa mais difícil da face da Terra. Os dois estavam em um impasse, mas não desanimavam. Horas se passaram e como nada havia sido decidido, ambos recolheram em seus quartos e prometeram que no outro dia tentariam novamente.

Na escola, Ainda Sem Nome continuava sem coragem para dizer à garota que, embora sem nome, ele havia sim personalidade. Só não sabia dizer ele próprio qual era. Cabisbaixo, chegara em casa já pela noitinha, ansioso para encontrar com a mãe e discutirem, mais uma vez, quais eram, afinal, suas qualidades e defeitos. No entanto, a tarefa continuava árdua para ambos e, mais uma vez, deitaram-se sem sequer escrever uma única palavra.

O que acontece quando nos limitamos a conhecermos nós próprios é que as horas, os dias, meses e anos se passam e chegamos à conclusão nenhuma. E não foi diferente com Ainda Sem Nome. O rapaz tornou-se adulto. Trabalhava em uma loja que consertava sapatos. A mãe, já meio idosa, jamais esquecera da tarefa de encontrar as qualidades e os defeitos em seu filho. Mas como dantes, só lhe via as qualidades.

Não tardou para que a mãe logo ficasse doente e viesse a falecer dentro em alguns dias. Ainda Sem Nome sentiu-se sem chão. A mãe era a pessoa que mais amava no mundo. Também amava o pai, mas não era do tipo que não sabia distinguir entre amar mais ao pai o à mãe. Para ele não havia discussão quanto ao assunto. O pai, tristonho por ter perdido sua grande companheira, não sabia o que dizer ao filho e apenas deu-lhe um abraço bem apertado. Ambos choraram. Um choro profundo, doído.

Enquanto caminhavam abraçados pelo cemitério, ambos olhavam para as lápides, pensativos. O filho rememorando os bons momentos com aquela que mais amara e o pai, embora tenha sempre ignorado o fato de o filho não ter um nome, pela primeira vez sentiu que seria necessário que se escolhesse um, talvez fosse um presente à esposa, que jamais se conformou em nunca ter chegado a uma conclusão quanto ao nome do filho, coisa que ela e Ainda Sem Nome jamais discutiram novamente.

Assim sendo, o pai parou em frente a uma das lápides e leu em voz alta: ACELINO. ACELINO. E o rapaz olhou-o espantando. O pai, por fim, disse-lhe que esse seria seu nome: ACELINO. O rapaz, sem pestanejar, aceitou. O nome lhe soava bem. Para ele, essa questão do nome poderia ter sido resolvida há tempos, posto que já era homem feito. Mas a opinião da mãe era de extrema importância e por isso jamais escolheu sozinho.

Ainda Sem Nome entrou com processo na justiça, seu nome fora trocado para Acelino e ele jamais procurou saber o significado do nome. Esse era só um nome e nada mais, pois para o agora Acelino, a opinião da mãe era, afinal, o que mais lhe importava.

Por Jéssica França
Enviado por Por Jéssica França em 27/06/2014
Reeditado em 30/06/2014
Código do texto: T4860875
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