254-SALVANDO A BESTA MORTA- Bom Humor

— Lá vem seu Belmiro Paulista na besta Sapeca. — Os freqüentadores da venda de Totó Miranda viam a poeira levantada, de longe, pelo imponente animal, montado garbosamente pelo orgulhoso proprietário. Muitos fregueses interrompiam suas compras ou seus goles de cachaça com capilé para se achegarem às portas do estabelecimento, a fim de admirar o atilado fazendeiro e sua montaria.

— Boas tardes, pessoal! — Belmiro Paulista irradiava simpatia. Cumprimentava com satisfação e respondia com prazer qualquer saudação, viesse de gente graúda ou do pessoal humilde. — Boa Tarde, seu Totó.

Todos respondiam com satisfação. Dava gosto ver a passagem do seu Belmiro. Vestia-se sempre com elegância, o terno de brim cáqui, camisa branca fechada no pescoço, chapéu panamá e botas de cano alto, do tipo usado pelos soldados da época.

A montaria, então, era o máximo. A andadura da besta Sapeca era de cadência militar, levantando as patas dianteiras e deixando-as bater na calçada, arrancando faíscas. O nome foi dado devido à cor do pêlo vermelho tostado, que, como qualquer pessoa ali presente, assistindo ao desfile, conhecia por “sapecado”.

Pela besta já tivera seu Belmiro as melhores ofertas, quer fossem para venda, quer por troca por outros animais, por veículos e até por terras. Matias Jorge, outro fazendeiro que apreciava bons animais, já havia oferecido ao Belmiro um pequeno sítio, que apanhara em permutas outras, em troca da ponderosa besta. A todos seu Belmiro recusava-se sequer conversar sobre o assunto.

Lilico Bento, vizinho de seu Belmiro, era o mais interessado na posse de Sapeca. E tanto falou, tanto ofereceu, tanto insistiu, que acabou dobrando seu Belmiro. Aconteceu quando seu Belmiro comprou um automóvel, um Ford-29 estalando de novo e aprendeu a dirigir. Então, seu prazer em dirigir superou o de montar a Sapeca. Mesmo porque a Sapeca já estava ficando cheia de tretas, sinal da velhice que se aproximava, que os animais também têm seus períodos de crescimento e declínio.

— Tá bom, cumpadre. Vendo-lhe a Sapeca. Mas não é por qualquer vintém, não senhor. Fique firme e não vá car da cadeira quando eu falar o preço.

— Fale, cumpadre. Tou ouvindo com todo o respeito.

Sentados na imensa varanda da casa-sede da Fazenda Veredas, os dois eram exemplares típicos dos fazendeiros da região. Seu Belmiro, chamado de “Paulista”, era homem dinâmico, criador de gado fino, gostava do bom e do melhor. De espírito empreendedor, foi o criador da cooperativa de leite, a qual dirigia há muitos anos. Já Lilico Bento, mineiro de tradição, tinha fazenda de café. Graças à sua pertinácia, aumentava a cada ano a sua plantação, que naquela época chegava aos duzentos mil pés. Todos dois, honestos, trabalhadores e determinados, não admitiam revezes, e se algo acontecia fora do planejado — anos de seca, pragas no gado, por exemplo — tratavam sempre de acudir a tempo e à hora.

— A gente tem sempre que fazer do limão uma limonada. — Costumava afirmar Lilico Bento.

E ali estava o mineiro, enrolando com vagar o cigarro de palha, como se aquele ato tivesse o dom de amaciar o amigo paulista.

— Pode falar, cumpadre. Quanto quer pela besta Sapeca?

Seu Ramiro aspirou fundo o charuto, a ponta incandescente crescendo perto da boca. Parecia inspirar coragem.

— Vinte contos. Nem mais, nem menos.

— Uai, cumpadre! É o preço de uma casa na cidade!

— Pois é, cumpadre. Só que casa na cidade tem às dúzias, e uma montaria como a Sapeca...só ela mesma. Não tem igual.

Conversa vai, conversa vem, fecharam o negócio em quinze contos de réis.

— Por mais dois, o cumpadre leva a arreata nova, de pouco uso.

— Tá certo. Mas só posso lhe pagar daqui a uns meses, quando receber o dinheiro da safra deste ano.

— Coloca o juro em cima e me dá uma promissória. — Finalizou o paulista.

Lilico Bento era o homem mais feliz do mundo quando saiu da fazenda Veredas montado na cobiçada Sapeca.

Não deu sorte o Lilico Bento com a besta. Por uma dessas desgraças que acontecem apenas uma vez na vida de cada um, a formosa besta ficou doente e morreu em uma semana após a transação. Foi com a cara mais murcha do mundo que o novo proprietário mandou o recado ao seu Belmiro, pelo seu capataz Zé das Trintas, tão logo a besta fechou os olhos.

— Diz pro cumpadre que a besta morreu mas que vou honrar meu compromisso.

Zé das Trinta voltou acompanhado pelo seu Belmiro.

— Uai, cumpadre, o que aconteceu?

— Sei não, cumpadre. Deu uma tristeza na besta, deixou de comer e de beber, e morreu.

Seu Belmiro viu o animal morto, na baia, e se encheu de tristeza. Não devia ter vendido a Sapeca, ela morreu foi de saudade, de banzo, pensou. E agora, não é justo cobrar a dívida do cumpadre.

Como que lendo o pensamento, Lilico foi logo reafirmando:

— Fique tranqüilo, cumpadre, vou lhe pagar no dia marcado. Não se preocupe.

Mastigando o charuto apagado, seu Belmiro pensava numa solução. Então, teve um estalo.

— Cumpadre, me devolve a besta. O negócio da venda tá desfeito.

— Uai, cumpadre Belmiro, cê tá querendo dizer que vai receber a mula morta...de volta?

— É isso mesmo, cumpadre. Hoje mesmo, e eu lhe devolvo a promissória. Num precisa comentar com ninguém o nosso distrato. Fica só entre nóis, tá certo?

Embora achando esquisita a proposta, Lilico tomou todas as providência e naquela tarde mesma a falecida estava já na fazenda Veredas, a arreata acompanhando o animal.

Amuado em sua tristeza, Lilico enfurnou-se na fazenda. Época de muito serviço nas lavouras, passou algum tempo sem ir à cidade nem visitar o vizinho Ramiro. Uns dois meses depois, foi prestar uma visita de cortesia ao colega paulista. Estava curioso por saber o que o compadre teria feito da besta falecida.

Depois de muito enrolar cigarros de fumo de corda e jogar muita conversa fora, encheu-se de ânimo e perguntou.

— Então, cumpadre, e a Sapeca?

— Rifei ela.

— Uai, cumpadre, cê rifou a Sapeca...morta?

— É, cumpadre. Fiz uma rifa de mil números, vendi todos os números. Na cidade, todo mundo era vidrado na besta. Vendi tudo numa tarde só. Foi parar na frente da venda do Totó Miranda, oferecer os bilhetinhos, e vendi na hora.

— Quanto custou cada número?

— Vinte mil réis. Apurei vinte contos na rifa, cumpadre.

— Mas... ninguém quis ver a mula?

— Qual o que, cumpadre. Ela era conhecida. E eu falei que ela tava na minha fazenda, o que não era mentira. Só não avisei como é que ela tava.

— Mais...mais... e o cara que ganhou o sorteio, num reclamou?

— Pois é. Quem ganhou foi o Clemêncio, cê conhece? Falei pra ele vir buscar no dia seguinte, que tinha urgência. Ele falou: “Uai, se puder, vou hoje mesmo”. É claro que quando chegou e viu a mula morta, ficou muito danado.

— E aí?

— Aí, eu devolvi pra ele os vinte mil reis que ele pagou na rifa e embolsei o lucro. E ele saiu caladinho, num falou pra ninguém, com medo do deboche, que tinha sido sorteado com uma mula morta.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 17 DE NOVEMBRODE 2003

CONTO # 254 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/06/2014
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