Pruquê tão tristi?
(baseado em fatos reais)
Tinham sido duas horas de avião. Marianna passava alguns dias na aprazível casa de sua amiga Gustava. Levara seu irmão, Maastricht, com quase 80 anos. Parkinson e coisa e tal, mas lúcido e andando relativamente bem.
- Estou indo levar meu pai lá embaixo no centro. Torceu o pé. Querem ir também?
- Claro, não estamos fazendo nada mesmo. Tudo é festa, respondeu Marianna.
Na verdade tratava-se de um centro espírita. Pouco depois de terem chegado, Marianna notou que o caboclo Flor olhava com certa insistência para seu irmão. E aproximando-se depois:
- Cumu ele é bunito, né? Fromoso.
Maastricht, impassível, sorria discretamente.
- Vamos, fazi um pedido pra mim. Num é o qui tu tá queleno?
E Maastricht, depois da insistência da moça que incorporava o caboclo Flor:
- Queria que meu irmão parasse de beber.
- Hummmm... Tá dirficil. Isso muito dirficil.
Esse outro irmão de Maastricht e Marianna, Simeone, vivia com Nádia e tinha três filhos. E os três praticamente viviam às expensas de Maastricht, antes de o ancião passar a morar com sua irmã Marianna. E mesmo depois. Nada fora comentado na presença do caboclo.
- Mas por que difícil?, Mariana resolveu perguntar.
- Naquela casa ninguém queres nada, nadinha, disse o caboclo Flor.
Marianna surpreendeu-se com a resposta do caboclo. Como ele sabia do que acontecia? Os três filhos de Simeone, todos com mais de 20 anos, não trabalhavam. Vivam praticamente de biscastes. Nádia, a mãe deles, muito menos. E Simeone, dependente do álcool, conseguira uma colocação de inspetor numa empresa depois de 40 anos de idade. Maastricht sempre pagava tudo.
- Mas vou vê. Sumcê vem minha festa, num vem?
Maastricht olhou para Marianna logo animado:
- Venho, sim.
Quando todos já se preparavam para sair do terreiro, com Leopoldo, pai de Gustava, atendido, aproximou-se deles a vovó Maria Conga:
- Sumcê num vai, não. Quero falar com sumcê, ela se dirigia a Maastricht.
Marianna e o irmão voltaram a sentar-se.
- Sumcê é homi muito bom. Ajuda todo mundo. O Criador gosta muito de sumcê.
Maastricht, impassível, apenas escutava. Com Marianna refazendo-se da surpresa.
- Mas pruquê sempre tão tristi? Sumcê num qué fazê passagi, num é?
- Não, Maastricht conseguiu responder.
- Intão, si num qué fazê passagi, num podi ficar tristi. O Criador num qué sumcê tristi. Pruquê toda noite pega aqueli livro dos espíritos i lê? E faz pedido pra todos os teus irmão menos pra sumcê?
Marianna apavorou-se. Por que a menção àquele livro se ninguém tinha mencionado livro algum até àquela hora?
- Pruquê pédi tanto pra todo mundo i nada pra sumcê?
- Porque acho que não mereço, e aí Maastricht já começava a chorar copiosamente.
- Isso, chora, muleque, chora. Chora muito. Desabrafa qui é bom. Pruquê tão tristi? Naquela praia qui sumcê mora... Vai num mar. Lembra qui quando as onda toca na gente, é o Criador conversando cum a gente.
Marianna procurava disfarçar o choro.
- Tá cum frio? ‘Sa minina, esquenta um pouco di água i traz inté aqui.
Depois que a água morna chegou, Vovó Maria Conga pediu que Maastricht tirasse os sapatos. Marianna notou que os pés do velho estavam inchados. A vovó ficou conversando com eles mais um tempo enquanto lavava os pés de Maastricht.
- Sumcê podi continuar pidinu pra teus irmão, pra todo mundo, mas agora pédi também pra sumcê!
Ao saírem do terreiro, os pés de Maastricht já não estavam inchados. E eles foram surpreendidos pelo jantar oferecido pelo centro espírita. Inteiramente 0800. Marianna, após as primeiras investidas, temeu que a comida estivesse muito condimentada e que pudesse não fazer bem. Uma das atendentes, não incorporada, percebendo a reação de Marianna, tratou de tranquilizá-la:
- Não tenha medo. A comida daqui nunca faz mal a ninguém.
Marianna comeu tudo então, achou saborosa a refeição e nunca se sentiu tão bem.
Na volta, os dois irmãos no carro:
- Aquele terreiro é de candomblé, disse Marianna.
- Não é. É umbanda, retrucou Maastricht.
- Parece que alguém falou que era candomblé.
- Não é, Vovó Maria Conga só baixa em terreiro de umbanda, Maastricht sabia o que estava dizendo.
E Marianna, ouvindo isso, convencia-se de que seu irmão tinha merecido essa exceção. Até porque, como ficou sabendo depois, aquela pessoa que incorporava a vovó não costumava aparecer naquele centro.