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UM TIPO ANIQUILADO
 
 
      Esta personagem, de fato, existiu – deve andar vivinho da silva, por aí, pois, àquela época, rapaz ainda novo – e não se trata de figura de ficção, de modo nenhum. Um sujeito em carne e osso.
 
      Vizinho de meus pais, mas fazia pouco tempo. Certamente recém-casado, que os dois gajos que compunham o casal sem filhos, trocando um pelo outro, não iam além dos vinte e três anos de idade.
 
      Edilson, literalmente, um tipo aniquilado.
 
      Pelo quase nada que me foi possível captar de sua vida, fora seminarista. Trabalhava em um escritório de representação comercial e vestia-se razoavelmente de modo alinhado.
 
      No lar, nos intervalos de almoço e à tardinha, quando regressava da faina diária, é que as complicações da vidinha de Edilson viravam um pandemônio, o seu inferno astral: os ciúmes mórbidos e patológicos da mulher.
 
      Ele, um cabrão alto e circunspeto, o Edilson. Sempre usando lentes brancas e grossas, jeito solene, à maneira sacerdotal, justo, talvez, pela militância que tivera no seminário; a esposa, uma branquela baixinha e esbelta, cabelos pretos escorridos ali pelos ombros e, justiça seja feita, sem atrativos que se lhe pudéssemos exclamar “Oh, uma gata!”.  
 
      Por duas vezes, no centro da cidade, dei de testa com o cara a caminhar normalmente, sem neura nenhuma, de cabeça erguida. Diametralmente oposto daquele que, ao desapear-se do ônibus que o devolvia para casa, já enterrava o queixo no sopé do pescoço. E, por nada desse mundo, da parada do ônibus, até sua residência, o ex-interno dos padres erguia mais o seu olhar. Aniquilado mesmo, o camarada.
 
      O drama e a tragédia do Edilson eram, com toda a exatidão, a sua permanência no lar. A esposa do infeliz não o largava, pegava-lhe pelo pé, e aí o fuzuê da gritaria tinha princípio em sessões contínuas. Dele, pobre do infeliz, não se ouvia um pio. Calado e silente. Mas os palavrões da mulher retroavam, no ar. Meu pai, eu e minha mãe, que se benzia toda, que adoçássemos os ouvidos para nos acostumar com o rosário de verborragia chula.
 
      “– Ediiiiiiilson, seu b...!” – aí a moça desabotoava o verbo, com esta e mais uma sequência de expressões sinonímicas. Como se a primeira pérola já não bastasse, ela esgotava toda possível e imaginária família da suja e sórdida semântica dos impropérios. E o Edilson? Calado e silente, sim senhor.
 
      Ai, macacos me mordam! Nunca, em toda a minha vida, vi nem ouvi criaturinha chocha e baixota, ainda tão jovem, que falasse mais calões safados, e tudo o mais, só por conta do ciúme. Ciúme de um desgraçado que, na vizinhança, enfiava o queixo no gogó, não levantava os olhos e nem dirigia a palavra nem ao pároco do bairro.  
 
      Um dia, estando lá em casa, meu cunhado Luís não aguentou o tranco e foi à porta do casal, justo quando a senhorinha imprecava contra o marido palavrões dos mais cabeludos. Mesmo tão manso, que era o Luís, ele ficou tiririca e decidiu ir à porta fechada do casal e sapecou o bordão afetivo que sempre usava, a plenos pulmões:
 
      “– N e g ã o, troque essa mulher por outra. Ela não serve, não!”
 
      Lá de dentro da residência, nenhuma resposta. Foi quando meu pessoal comemorou o silêncio grande, hiato de paz que não era comum, com a presença do Edilson em sua casa.
 
Fort., 24/06/2014.
Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 24/06/2014
Reeditado em 25/06/2014
Código do texto: T4856592
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