O comissário do governo
Levara um tiro.
Tinha lembrança disso além de sentir o sangue quente empapando sua roupa. Fechou os olhos e uma lágrima correu, não sentia dor alguma apenas um formigamento geral num estado de semiconsciência. Ouvia muitos gritos vindos de todos os lados que retumbavam em seus ouvidos sem dó nem piedade. Tentou reagir, mas o que via era muitas pernas e sapatos a correrem ao seu redor e os gritos que não paravam de acontecer. O pó entrou em seu nariz e teve uma vontade irrefreável de espirrar, porém não pôde fazê-lo; alguma coisa cortou no meio de sua carne e a dor foi insuportável.
Ele sabia e sempre soube que um homem só não poderia pelejar com dois homens armados. Não acreditava que aquele seu desafeto traria o amigo para emboscá-lo no bar. Um entrou e o outro ficou lá fora, de tocaia para o caso do plano dar errado. Nunca desconfiou disso. Tinha certeza de sua bravura e nunca fugiu dos problemas. Achavam que ele estaria desguarnecido de proteção. Enganavam-se decerto e era feliz por isso.
Levou um susto quando viu o amigo do desafeto na porta do bar com o revólver estendido em sua direção, apavorado por encontrar o outro morto no chão. Só entrou porque ouviu os disparos e uma grande correria. Tinha o rosto transtornado quando atirou no comissário e ele ainda tinha os pensamentos em ordem quando ao cair atirou no seu assassino. Morto os dois. “Ou nós três”, pensou.
O desafeto não queria pagar os tributos exigidos e sabia que nesses casos, bastava que ele telegrafasse para a capital que o dito teria tudo confiscado com multas altíssimas devido às ilegalidades de seu comércio. Combinou no meio da tarde um encontro no bar do Hotel para acertarem a quantia e, como comissário enfrentaria um mar de lamentações sobre a precariedade de dinheiro daquele sem vergonha. Odiava quem não pagava impostos. Mas amava a mulher dele.
Havia saído da cama de amor para encontrar o marido traído no meio da rua. Tinha tudo planejado: Se ele não pagasse, contrataria um jagunço para dar fim àquele pobre diabo. Casaria com a esposa do futuro morto em outra cidade e viveriam bem e felizes e tinham um vasto horizonte de amor à sua frente.
Conheceu a Margarida atrás do balcão do comércio do marido onde fora fiscalizar numa quinta-feira de verão. Nunca esqueceria aquele dia que viu o amor pela primeira vez na sua vida e sentiu o perfume dela que fez um rombo em seu coração. Das conversas de balcão para a cama ardente foi uma semana, estava desgostosa do casamento, a coitada.
Tinha casado pela conveniência dos pais e isso entristeceu ainda mais a existência do comissário que lutava contra a paixão que sentia por ela.
Num desses encontros furtivos, encontraram uma vizinha que ia visitar a Margarida. Quando ela foi bater na porta, ele saía por ela com o riso leve e a frouxidão de depois do sexo. A Margarida comentou no dia seguinte as suas impressões e achava que todo mundo já sabia que eles eram amantes, pois que o marido estava diferente no trato com ela.
Nunca imaginaria que ao chegar à Campina da Cascavel teria todos os seus sentidos postos à prova. Um amor periclitante e um comerciante fraudulento. Estava fazendo as férias de um colega seu na região e chegara com a triste impressão de que um dia as coisas acabariam mal. Tentaria se aposentar antes de tudo e sairia de lá assim que seu amigo voltasse. Não tinha as adaptações necessárias para viver em cidades pequenas, ermas; gostava de cidades grandes com movimentações e lugares para onde ir quando não se tem aonde ir.
Agora estava ali. No chão sujo de terra, se esvaindo aos poucos e com lembranças que jamais esqueceria. O comerciante sentado do seu lado esquerdo com uma arma apontada para a sua barriga. Pegou-o de surpresa quando atirou com a mão direita em seu peito fazendo-o cair morto na hora. Aquela confusão de gentes correndo e o rosto transtornado do amigo do morto na porta de entrada a lhe mostrar a morte iminente.
Fechou os olhos e pensou na Margarida. Ela ficaria viúva do marido e do amante ao mesmo tempo e a esse pensamento expirou pela última vez com um sorriso nos lábios.