Aurora da Minha Vida
É de manhã, na já remota aurora da minha vida!
Num se alongar de preguiça, me estremeço num bocejo, por um cheiro que me convida.
Ao som de “Cuitelinho”, cambaleante ainda, me aproximo do fogão à lenha.
É de manhã, café quentinho, dou um bom dia mãe, que Deus a tenha.
A vaca berra, o bezerro implora em agonia, olho pela janela, meu avô, na mesma sintonia.
Sentado em banco manco, em curral de aroeira, num dia de chuva, que não levanta poeira.
Pracolá tão os porcos, nos eitão tem galinha e, pra todas as bandas, côco, pinha e mangas.
Um cadim mais pra baixo o rio, ah, o rio, serenim qui só ele.
Mais pra riba, o morro, nonde diz qui tem onça, mas eu nunca vi, mas havera de ter.
Cascai grande e cascai pequeno, estiva, bosta de boi e trierim no mato, mode nóis passá.
Carrapicho, diz qui tem capim, mas se tem, ta faiadim qui só.
A terra é branca, a cigarra canta, e nóis canta tamém, ritmado por mamãe.
Uma lezêra pra subir ladêra! Imagina na vorta a iscurregadêra?
No arto do morro, o pé de umbu. Êita lasquêra! E a gente brinca: Plural de umbu? Dois bu.
Na vorta é só desespero, umbu no lombo, levando tombo, com estilingue atirando em pombo.
E os juêi? tudo esfolado pra arder no rio quando tomá bãim.
Meu avô faiz pôco caso perguntando se é só isso e eu já saio de finim pra fugir do serviço.
Lava umbu, descasca umbu, freventa, penéra, bota açúcar e freventa mais inté pulá ni nóis.
Mexe pracolá e num dêxa grudá. Tá pronto? Não, só quando vê o fundo!
E o fundo se esconde bem lá no fundo pra gente num vê.
Naquele lugar, na aurora da minha vida, não tem tevê, num tem luiz mode lumiá, só tem guará!
De dia tem requejão, fejão sem pressão, café na isculatêra e andu na penêra, móde nóis catá.
De noite tem cochão de paia, morcego na cumiêra, e muita rizada de guri.
Ah, ih tem tamém um japonês, um tar de Niki, qui era coió purque sinô ô tô.
Imagino que era um documento muito importante que ele num pudia assiná de jeito manêra.
E, por castigo, cortaro o braço dele prêle num siná mais nada. Bem feito pro niki.
Meu avô qui contava essa história im cantiga e fazia nóis apurá a letra inté gravá.
Tadim do Niki.
Na aurora da minha vida eu me alembro da mãe torcendo cana na boca, mode chupá o caldo.
Nóis atiçando as orópa, de longe qui nóis num é besta, tacando pedra na lata e nóis curria.
Ela fazia bejú, na cozinha com têia preta. E lá fora tinha o pulêro das galinha.
Pulêro cum lata nos canto pra saruê num subi e im cada canto um cantim pras galinha botá.
Na frente tinha charrete, um Corcel II De Luxe e umas plantinha arrecortada redonda e quadrada.
Bêja-flô qui mamãe jurava qui já pegô cum pano jogado im riba, mais eu nunca vi.
Um carroção de boi qui chorava pra ir buscar água no rio de manhanzinha.
Tinha inté dois gavião qui atacava nóis, mode nóis num buli nele cum pedra.
Ah, da aurora da minha vida, do qui mais me alembro cum gosto é dos São João.
Tinha foguêra, tinha biscoito, bolo, canjica e fuguetório.
A gente pipocava fuguete daqui, o vizinho pipocava o dele de lá, e nóis coroava a árvore.
A coroação era com foguete de lágrimas.
Hoje im dia eu tô cada veiz mais coroa e num vejo mais fogueiras.
Não solto mais foguetes como antes, mas ainda solto lágrimas ao lembrar d’aurora da minha vida.
Já caminho em direção ao poente e até dos morcegos da cumeeira sinto falta.
Já não é mais de manhã. É tarde, pois não tenho mais avô, nem avó, nem mãe, nem pai.