Onde o impossível acontece
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– Sua negra boçal! – Assevera Joaquim Felício dos Santos.
– Sou “generala”, doutor! – Responde Chica, sem pestanejar. E continua: – Sou negra cidadã com muitos sonhos de liberdade. Por causa de mim, senhorzinho, a cidade de Diamantina será conhecida como a primeira democracia racial do mundo!
– Sua negra boçal e minha rainha! – Repete o historiador. – Venha aqui e me abrace, porque sua boçalidade se reveste de magia cativante...
No Brasil colônia, já cheio de encantos mil, Chica da Silva conquistou o coração do contratador João Fernandes, o mais cobiçado do arraial do Tejuco, mitigando preconceitos e enuviando mentes impuras, cheias de falsos branqueamentos. A escrava alforriada, boa de parto, teve treze filhos bastardos com o amante, todos registrados pelo homem branco – fato memorável para a época!
As irmandades estamentais
– Essa negra tem coração branco! – Declarou, durante reunião entre mães e freiras, madre Feitosa, referindo-se à Chica da Silva. – E as filhas dela – continuou – são anjos, escolhidos por Deus, a serviço dos pobres.
– A irmandade de São Francisco, madre – intervém a esposa de influente minerador da cidade – é para brancos, apenas brancos.
– Por isso, minha amada, que essa negra tem coração branco! A caridade transforma as pessoas, filha. E a Igreja entende essa possibilidade. No Carmo, as doações também foram abençoadas... Essa pobre senhora, além de nos auxiliar, ajuda a irmandade das Mercês e do Rosário, sem nenhuma distinção entre brancos, mulatos e negros.
– Então as negras podem associar-se?
– Somente as de coração branco, filha! Somente elas. – Responde a madre.
– Essa negra, madre, é dona de escravos!
– Que magnífico coração, não acha?
Antes que a senhora branca insistisse, madre Feitosa a interrompe e anuncia a chegada da nova contribuinte:
– Amadas filhas, chegou Chica da Silva, uma das nossas mais graciosas colaboradoras...
1796, final do Século XVIII. Ao falecer, Chica da Silva é velada na igreja de São Francisco de Assis, prerrogativa de brancos ricos.
Ano de 2013 – Século XXI
Os mitos não morrem
– Mãe!
– Oi, filha!
– Quem foi essa negra “Xica da Silva”?
– A da novela, filha?
– Não. A da vida real.
– Foi uma negra sedutora, escrava...
– Por que sedutora?
– Porque às negras, filha, não eram dadas oportunidades. Nossa história, eivada de falsas realidades e preconceitos, não aceita o verdadeiro amor. Então, usando a sexualidade como pano de fundo, mascara, ainda hoje, a crueldade imposta a negras escravas.
– Ela se prostituía?
– Claro que não, filha. Essa memorável negra, como milhares de outras, na impossibilidade de escolherem seus parceiros, apenas se submetiam a eles, diante do silêncio de todos.
– Isso parece carma da espécie. – Pondera a filha.
– Nada, entretanto, é absoluto, filha. E Chica da Silva, além de encantadora negra e irresistível mulher, manteve-se fiel ao amante, mesmo depois da separação. Usou o fogo contra o fogo, impondo-se pelo medo para saciar luxos e prazeres.
Mais uma lenda...
Contam que o dobrar dos sinos da Igreja de Nossa Senhora do Carmo perturbava o sono de Chica da Silva. Caprichosamente, ainda enquanto amante de João Fernandes, ela pediu a ele que mudasse a posição da torre. Se lenda ou fato real, o templo é o único em estilo barroco no Brasil onde a torre se situa atrás da nave central.
E agora, depois de aventurar-me no imaginário-real das Chicas, convido-os a se deliciarem com o “Xinxim da Chica”, o prato preferido da negra.