Personagem Trágica
Ela não devia ter mais de dezesseis anos. Estava parada numa esquina, era o fim de uma tarde chuvosa.
Abraçava seu corpo esguio e flexionava os joelhos tentando se proteger do frio. Usava um uniforme escolar ensopado enquanto encolhia-se contra o muro. A chuva tórrida fazia seus cabelos curtos e negros caírem sobre as maçãs coradas da sua face. Olhos azuis, mesmo de longe podia perceber a cor intensa deles.
Eu jurei ter visto lágrimas caindo deles, mas talvez fosse apenas a chuva.
Lábios rosados entreabertos, sua cabeça pendia para baixo. Fones de ouvido. Que musica estaria ouvindo?
Pela sua expressão, nada muito alegre.
Trágica. Essa era a melhor palavra para descrevê-la. Ela era uma perfeita heroína trágica de um romance.
A partir desse momento passeia ater devaneios a respeito da garota misteriosa.
Qual seria sua história? Sua dor? Quais desafios enfrentaria minha jovem heroína para realizar seu sonho e conquistar o amor de sua vida?
Seria ela uma rebelde lutando contra um sistema opressor? Uma princesa disfarçada para viver um amor comum? Uma pobre criança que teve seu coração partido por um crápula cruel?
Ela se moveu. Andou até a rua e observou o caminho. Procurava algo, alguém.
Talvez estivesse esperando pelo namorado, a quem sua mãe autoritária proibiu de ver. E essa noite os amantes fugiriam.
Uma amiga? Tinha um amor secreto por sua melhor amiga, nessa tarde chuvosa confessaria seus sentimentos clandestinos.
Ou seu pai. Ele prometeu que a levaria ao cinema, prometeu passar um tempo com ela, mas como sempre, quebrou sua promessa e a decepcionou.
Oh minha cara personagem trágica! Qual teu segredo?
Eu estava prestes a ir ao seu encontro para perguntar diretamente a jovem qual era sua história.
Mas ouvi um carro. Ele vinha em alta velocidade. Ela simplesmente jogou-se na frente. O carro a acertou em cheio, arremessou seu corpinho adolescente para longe. Quebrou o pescoço na queda. Uma poça de sangue formou-se ao seu redor. Seus olhos encaravam o céu de cor gêmea.
Este foi o fim da minha heroína? Suicídio?
Ela apenas atirou-se na frente de um carro como Anna Karenina fez com o trem?
Isso me perturbou tremendamente. A menina não abandonou minha mente uma vez sequer. A curiosidade me corroía.
Afinal, porque ela tirara a própria vida?
A misteriosa jovem tornou-se minha obsessão.
Logo comecei minhas investigações sobre a garota, tal como pedia minha profissão de escritor.
A pedido da família, o acontecimento foi divulgado como acidente. Mas eu sabia a verdade.
Visitei a casa de seus pais. Pais perfeitos, liberais, mimavam a menina, estavam devastados com a morte da filha única. Estive em seu quarto, haviam muitos livros, muitas fotos, em todas ela sorria.
Conversei com seus amigos, ela era popular. Todos a amavam. Os rapazes a cobiçavam, as meninas a invejavam por sua beleza. Tinha notas ótimas. Entraria na faculdade que quisesse, um futuro brilhante a esperava.
Era animada, divertida. Tinha uma opinião forme e certa originalidade. Tal como eu, amava a literatura, cultivava a escrita e ouvia um bom e velho rock.
De longe, aquela era a vida mais feliz que vi.
Ela era perfeita demais, tinha uma vida perfeita demais. Chegava a ser sem graça.
Talvez, sua vida perfeita não fosse uma aventura boa o suficiente para minha querida personagem trágica.