Bebidas, cigarros e uma porção extra de dor.

Era uma manha pálida aquela. O sol não ousou dar as caras e as nuvens se amontoaram uma sobre as outras, formando uma espécie de lençol esbranquiçado, úmido. Um tanto lúgubre demais para o meu gosto.

Bem, para não faltar com a verdade, era um clima adequado para os pensamentos funestos de André, enquanto ele andava sem rumo pela rua apinhada de pessoas desconhecidas. Insignificantes. Era um homenzinho de aparência rude, com cabelos pintalgados de branco aqui e acolá. Tinha olhos vermelhos. Quero dizer, parcialmente vermelhos. Na verdade, os seus olhos eram de um azul vivo, sorridentes. Ou pelo menos fora assim um dia.

Não é mais.

Sabe quando dizem que o tempo não é fácil para ninguém? Bom, obviamente para André não foi. Sua barba por fazer comichava vez por outra. Sua barriga proeminente era a prova de que um dia aquele homem fora um consumidor das delicias da vida. Não o culpe. Essas coisas são irresistíveis. É claro que quando sofremos com problemas no coração e o médico diz que nosso caso é bastante grave, nós tentamos ao máximo evitar qualquer coisa que possa nos presentear com uma lápide – ou coisa parecida.

E aí... E aí é que você entra naquela coisa chamada “dieta saudável”, ou, seja lá como chamem isso, diabos, o que André precisava era de um copo de cerveja e qualquer coisa para mastigar.

Na calçada, pessoas apresadíssimas passavam a passos largos, pouco se importando com o homem barrigudo que agonizava ajoelhado. Eu não sei exatamente a idade de André, mas se fosse para chutar, diria 54 (tudo bem, 55). Sua aparência não o denunciava, de fato. Quando a pessoa vive uma vida desregrada, dando pouca importância à aparência – ou o que os outros iriam dizer, é meio difícil precisar a sua idade. Ele poderia ter sessenta e poucos anos, ou cinquenta e muitos. Depende do ângulo em que você o encarava.

André sentiu uma fisgada dolorosa no peito. Sua mão foi inconscientemente no local da dor, como se fosse possível agarra-la e jogá-la na lata de lixo. E não saía mais, ouviu?

Esse pensamento sem dúvida faria André rir, não fosse a dor alucinante que sentia naquele exato momento. Uma nesguinha de sangue escorreu o nariz. As lágrimas embaçavam sua visão. Vultos de homens impiedosos passavam direto. Não ousavam olhar. É como estar sentado em um ônibus e, de repente, uma velhinha entra. O que você faz? Fecha os olhos. Ela não pode saber que você a viu. Olhar para uma velhinha em pé num ônibus lotado significa ser um homem de bom coração e pedir para que ela sente em seu lugar. Caso contrário, a culpa o corroeria por completo.

Mas é como diz o ditado: O que os olhos não veem o coração não sente.

A ultima coisa que André viu quando bateu com a cabeçorra no asfalto foi uma garrafa de uísque à sua frente. Ou talvez fosse apenas alucinação, causada pela forte pancada na cabeça. Mas isso não deveria nos surpreender. É difícil pessoas como André mudar de uma hora para outra. Mais difícil ainda, é mudar enquanto sente a vida se esvair. Você tenta se agarrar a ela, mas a consciência de que isso é impossível escorrega garganta abaixo, ardente. Queimando. Uma leve semelhança que se sente ao tomar uma dose de uísque. Desce cortando e permanece no estômago, borbulhando. A sensação deliciosa de sentir seu interior queimar.

Mas dessa vez ele não teve tempo para uma segunda rodada.

Jeferson Seyfried
Enviado por Jeferson Seyfried em 12/05/2014
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