209 - PODELA
De volta à venda de Totó Miranda, cuja ojeriza pelos fiscais ficou registrada anteriormente, numa destas milistórias. Desta vez, para registrar a atenção com que o comerciante atende a todos os clientes. Vou registrar o causo como me foi contado pelo Zé Baleia, um gigante de dois metros de altura por dois de circunferência, pesando dez arrobas líquidas.
— Pois é, douto, é cumo tou lhe dizendo. Num tem venda mais surtida no mundo do que a do Totó Miranda. Lá tem di tudo um pouco, um pouco de tudo. Inda usturdia acontecu um causo que prova que num sou mintiroso, não sinhor. — Baleia está sentado num tamborete ao lado de uma das portas do grande empório. Puxa do canivete e começa a picar o fumo. A palha aponta no bolso de trás da larga calça.
— Mas deve ter alguma coisa que ele não tem. Não é possível que ai dentro tenha de tudo. — Fala quarqué coisa, que ele tem. Se não tiver, manda buscar. O homem é caprichoso. Oia, fais pouco mis de semana, chegou aqui um sinhor elegante, de fala chiada, sutaque carioca, o sinhor sabe. Chegou de carro e foi direto procurando a oficina mecânica do Chico Gasolina. O carro tava nas urtima. Tinha de trocar a rebimboca do carburador, conforme o Chico me contou. O dono do carro ficou desesperado.
— Rebimboca do carburador? Maiss onde é que vou encontrar exa pexa, aqui nexe fim de mundo? — chiou o homem do Rio.
— Preocupa não, dotô. Vai ali na loja do Totó Miranda. Ele tem um estoque de peças para carros. Lá o senhor encontra a rebimboca. — esclareceu o mecânico.
Lá na loja o homem foi atendido pelo próprio Totó. Procura daqui, procura dali, nas prateleiras com as peça pros automóves, encontrou uma rebimboca. Ricondicionada, mais ainda boa. O carioca assustou com o estoque da casa.
— Maiss, o xenhor tem mexmo de tudo ai, hein?
— Pode falar que quizer. — Totó Miranda gosta de exibir. — Se não tiver, mando buscar pro senhor, em qualquer parte do mundo.
— O senhor tem de tudo, mesmo?
— Pode pedir.
— Prego de duas cabeças, tem?
— Tá aqui! — Totó pega um maço de prego, e mostra os prego de duas cabeças.
— Maná do deserto?
Totó Miranda procura e acha numa prateleira uma lata amarela. Na tampa, desenhos mostram cenas do deserto e arabescos indicam ser mercadoria importada.Da Turquia ou das arabias. Abre e mostra a mercadoria pro carioca.
— Tá aqui: o verdadeiro maná do deserto. Daquele que fala a Bíblia. Os judeus ficaram quarenta anos comendo desse maná. Tá na bíblia.
O carioca ficou admirado. Mais ceis sabe cumo são os carioca. Gosta de gozar os outros. Principarmente os mineiro. Intão ele pensou, e num demorou muito, falou:
— E o senhor tem PODELA ?
Totó Miranda nunca tinha ouvido falar naquilo. Mas num fala que num tem.
— No momento, tou em falta. Mas se o senhor voltar amanhã, consigo. Quanto o senhor quer?
É claro que o carioca tinha inventado a mercadoria. Mais, agora, era trucar com o comerciante, a ver o que vai dar.
— Dois quilos. Sim... é isto! Quero dois quilos de prodela. Se o senhor arranjar....
— Pode voltar amanhã, é garantido.
O carioca saiu da venda intrigado. Quero ver como é que ele vai conseguir uma mercadoria cujo nome eu acabo de inventar. Agora, pego esse panaca!
Seu Totó Miranda, por sua vez, ficou pensando, pensando. Que será esse raio de prodela. Ah! Deve ser alguma erva ou raiz. Porque num pensei nisso antes?
Nem bem o carioca torceu a isquina, Totó Miranda saiu, atravessou a rua e bateu na porta de Dona Luzia, raizeira que catava ervas e raízes no mato, fazia poções e sabia de tudo dessas coisas.
— Podela? Não, seu Totó, num é erva nem raiz, tenho certeza. Nunca ouvi falá. — responde a velhinha.
Totó Miranda telefona pro Genésio, representante da maior firma atacadista de S. Paulo.
— Podela? Não, seu Totó, não tenho essa mercadoria, não. O que é?
— Sei lá. Um freguês, de passagem por aqui, me pediu. Tenho de encontrar a tal podela.
Zé Baleia continua no relato:
Passou o dia dependurado no telefone. Falou com mais de vinte fornecedores, no país, e até no estrangeiro. O sinhor sabe, Totó Miranda traz bacaiau da Noruega, azeitona da Grécia. ´Tem vinho da França e as ferramenta que vende são tudo da Alemanha, de legitimo aço Solingem. Mais ninguém,, no mundo inteiro, deu notícia da tar de podela. De tardezinha, seu Totó tava desanimado. Mais teve um estalo de inteligência.
— Esse carioca tá mangando cumigo. Essa podela num existe. Mas vou lhe satisfazer o pedido, ara se vou.
Já tava escurecendo quando seu Totó foi no quintar, com uma lata de goiabada, dessas lata redonda e rasa, e, atrás das bananeira, “fez o serviço” na dita latinha. Foi pra mais de quilo daquela coisa fedorenta. Pois a latinha dentro do forno, pra mode seca tudo. Quando tava bem seca, pilou a “coisa” bem fininha e preparou tudo bem preparado, num saquinho. Num deu nem meio quilo, mais tava bom, pra finalidade.
No outro dia, bem cedo, chegou o carioca, aquele jeito malandro, alegre da vida (porque que eles tão sempre rindo, hein?), tarveiz pensado — Quero ver a cara do Totó Miranda. Desta vez ele não vai ter a mercadoria que eu inventei.
Quando chegou no balcão, lá estava o Totó Miranda, também um risinho safado, esperando o ilustre freguês.
— Então, seu Totó, cadê a podela?
— Taquí, seu dotor. Deu o que fazê pra conseguir, mas arranjei. Só consegui meio quilo, pois é mercadoria difícil arranjar, assim, sequinha, pronta para ser usada. — Entrega o saquinho com a “mercadoria”.
O carioca fica meio assustado. Poxa, num é que exxe jacu achou uma coisa que eu penxei que tinha inventado! — Abriu o saquinho e verifico o conteúdo: um pó pardo, bem fininho, com um cheiro forte. Tapou logo o nariz. Com cuidado, pegou uma pitadinha da coisa e colocou na língua. — Ao sentir o gosto, cuspiu fora, com a cara mais nojenta do mundo e gritou pro Totó Miranda:
— Mas, ixxo aqui é MERDA!
— Não, seu dotor, é PODELA!
Antonio Roque Gobbo —
Belo Horizonte, 28 de fevereiro de 2003.
Conto # 209 – DA SERIE MILISTÓRIAS