O copo
No início do século passado, quando a Campina da Cascavel era apenas uma pequena comunidade em ascensão, o tabelião chegou da capital com um jornal escrito em inglês, dizendo que aparecera em algum lugar da França experimentos assombrosos que eram como uma espécie de comunicação com o além, uma comunicação com os mortos. Explicava sobre um ensaio com uma mesa, uma tábua ouija e outros tipos de conversações – ainda esperando ser comprovadas - com o pessoal do lado de lá.
O tabelião deixou a nota grudada na vitrine do seu estabelecimento com a devida tradução. Quem passava e sabia ler, lia e ficava impressionado com tamanhos absurdos, mas decerto que seria o progresso e o Padre Dimas falaria disso em alguma missa.
O papel amarelou justamente no dia em que duas amigas apaixonaram-se pelo mesmo rapaz.
Eram amigas íntimas e logo, a Karina expressou seu amor pelo moço Leandro. Disse também que havia recebido um bilhete perfumado, sem assinatura, mas tinha certeza absoluta que o remetente era o seu apaixonado. A Jussara mordeu-se de ciúmes e ainda mais depois de ler a dita missiva. Aquele perfume que exalou das palavras de paixão, entraram em seu ser como uma nuvem brilhante de felicidade e pensou que era ela quem merecia tanta poesia. Esqueceu-se da amiga e apertou o bilhete em seu peito como se fosse a própria alma do rapaz e a Karina ofendeu-se com tamanho disparate e tirando-lhe bruscamente o papel das mãos da amiga, pediu explicações.
Jussara falou que sempre sonhara com um príncipe encantado e que tinha juntado o papel em seu peito para ver se “chamava” um daqueles para si. Também queria amar e não era justo a amiga pensar bobagens.
E a Karina acreditou no embuste da mulher traidora.
Pois o Leandro não tardou em mandar bilhetes assinados à Karina e esta, ficava cada dia mais deslumbrada e contava tudo, desde seus anseios até o medo de ser enganada.
Um dia, a Jussara disse à Karina que conhecia um método para saber se o Leandro estava mesmo apaixonado por ela e se iriam se casar e se teriam filhos, se a casa seria como ela gostava e saberiam do futuro através dos espíritos. Karina, fervorosa em sua religião não aceitou imediatamente, mas a curiosidade foi tanta que acabou concordando.
Fizeram muitos papeizinhos com todas as letras do alfabeto, um “sim” e um “não”, todos os números, acenderam uma vela, dispuseram tudo num círculo, a vela do lado de fora e um copo do lado de dentro. Fizeram uma reza que só a Jussara sabia, colocaram as mãos no copo e pediram: “Tem alguém aí”?
Karina estava muito nervosa e não foi difícil para a Jussara dizer-lhe através das andanças do copo pelo alfabeto que o Leandro era um crápula e que se casaria com outra e, portanto, ela estava sendo alvo de algo que possivelmente não se livraria durante toda a sua vida. Que terminasse o relacionamento e tudo daria certo em sua vida.
E foi exatamente isso que a Karina fez. Terminou com as trocas de cartas amorosas dizendo não ser hora para um namoro. O Leandro ficou triste e amargurado em suas dúvidas, resolveu – como numa vingança – namorar Jussara, somente para lhe dar na cara que não gostava de ser despachado assim, sem mais nem menos.
Obviamente que a Jussara aceitou, mesmo vendo a amiga em prantos e sofrendo deveras pelo afastamento do seu amor. Mas Karina tinha determinação e foi-se embora para a capital estudar para ser professora.
O Leandro logo se cansou de todas as facilidades que o amor de Jussara lhe brindava e decidiu que ela não era moça para casamento e que se ela lhe entregava tudo de mão beijada, provavelmente faria o mesmo com todos os outros que se aproximariam. E ele não titubeou quando terminou os encontros furtivos e doentios com ela.
Inconformada com a situação, Jussara resolveu recorrer àquele método de comunicação com o além e assim que depositou o copo dentro daquele círculo medonho, ele moveu-se sozinho, indo parar em frente ao papel escrito “não”. Pegava o copo de volta e começava com aquela reza sem nexo, desesperada em seu íntimo, louca para saber o que tinha tirado Leandro de si e quando então abria os olhos cheios de lágrimas encontrava o copo apontando o “não”. Não se apercebeu da ira que foi tomando conta do seu ser e com um golpe de mão espalhou todos os papeis pelo chão e chorava copiosamente com os músculos endurecidos e doloridos da pressão que sentia em seu coração. Levantou a cabeça num assomo efêmero de tranquilidade e foi procurar o copo para guarda-lo. Ele estava apontando para um bilhetinho virado para baixo e quando foi ler o que estava escrito, encontrou o “não” de novo em suas mãos.
Amassou aquela palavra maldita e sentou-se com o copo na mão.
Estava tão cansada daquilo que foi deitar-se. Acordou sentindo um cheiro de queimado em seu quarto e o copo que antes estava em seu colo, agora apontava inescrupulosamente para o “não” marcado a fogo no assoalho de seu quarto.