A LENDA DO AÇUAI

As grandes jangadas chegaram, trazidas pelo vento. Do alto da colina que se desmanchava pelas bandas do mar em praias de areias sem fim, brancas de doer nos olhos, Jekitã observava a aproximação. Eram jangadas diferentes de tudo o que o índio já havia visto. À medida que se aproximavam, ele notou que nos grandes cascos estavam plantados troncos altos e retos nos quais se dependuravam cipós e redes estendidas. As grandes jangadas detiveram-se a uma considerável distância da praia. Delas foram jogadas ao mar outras embarcações, pequenas pirogas arredondadas. Alguns homens brancos desceram por cordas da grande jangada até as pirogas e puseram-se a remar na direção da praia.

Jekitã não esperou mais. Correndo por sobre as dunas e entrando pela mata rala de cajueiro, seguiu ligeiro a trilha até o ponto onde havia deixado sua piroga. Remando com fortes golpes, os músculos retesados sob a pele morena, não levou muito tempo para chegar à taba, onde, afobado e esbaforido, relatou ao pai o que observara na praia.

— São quatro grandes jangadas, mais parecem grades ocas, com o tronco de um buritizeiro plantado no meio de cada uma delas. No tronco estão amarrados cordas e cestas. As jangadas estão lá, paradas no meio do mar. Os homens usam outras canoas para virem na direção da praia.

— Que homens são? Guerreiros de tribos inimigas? — O cacique Itaki, pai de Jekitã, quer saber detalhes.

— São homens brancos, pai. Não são guerreiros como nós. Não trazem arcos nem flechas. Têm todo o corpo coberto por vestes e as caras cobertas de pêlo.

Rápido nas decisões, o cacique organiza um grupo dos índios mais fortes e experientes para irem à praia. São escolhidos nove guerreiros, entre eles Jekitã, que os guiará até o local do desembarque. A expedição, armada e abastecida de objetos que poderiam ser oferecidos aos visitantes, caminhou silenciosamente pela mesma trilha que Jekitã percorrera correndo, horas antes.

— Vamos observar apenas. Ninguém se aproxima sem minha ordem. — O cacique não temia o desconhecido, mas era precavido. Talvez aqueles fossem homens pacíficos, não guerreiros. Mas já tivera notícias da chegada de homens estranhos em grandes jangadas, vindos não se sabe de onde. A lenda corria entre as tribos que habitavam terras do outro lado do mar, as quais eram invisíveis para os índios. Homens de pele pálida, que traziam armas e combatiam as tribos que não se sujeitavam ao seu domínio.

Desceram o rio em quatro pirogas, silenciosamente e sob a proteção das altas árvores que lançavam sombras sobre as margens. Iam armados de arcos e muitas flechas, além dos tacapes e de cordas para fazerem armadilhas no mato.

— Todo cuidado é pouco. Os homens podem subir o rio e devemos estar preparados.

Não chegaram até ao encontro do rio com o mar. Pararam de remar e encostaram as pirogas numa pequena enseada sombria, onde a curva do rio ajudava a escondê-las. Subiram pelas dunas a pé, procurando se esconder sob abrigos de árvores rasteiras e moitas de capim. Viram ao longe as três grandes canoas e, na praia, muitos homens que já haviam chegado com suas pirogas largas. Caminhavam determinados em direção a um bosque de árvores mais altas, que se destacava da rala vegetação e que dava início a uma mata cerrada, estendendo-se na direção do poente.

— Procuram um lugar para construir uma taba.

— Vamos nos aproximar em dois grupos. — A determinação veio do cacique. — Arapuã, Mokapi e Kalandu, venham comigo. Os demais fiquem escondidos aqui, só se aproximem quando eu fizer sinais.

Desceram os quatro pelas dunas, em direção aos estranhos navegantes. Os brancos param suas idas e vindas pela praia ao verem a aproximação dos índios. Alguns deles pegam de tacapes com a ponta bem fina e apontam para os índios. O chefe dos índios aproxima-se sem temor, a mão direita levantada, espalmada, mostrando o sinal de paz, conhecido entre todas as tribos.

— Itaki, cacique da tribo Xanxerê, traz paz. — Falou o líder indígena, em sua língua nativa.

Os brancos não baixaram a guarda, continuaram com seus tacapes apontados para os índios, aproximando-se e cercando-os num círculo. Nenhum gesto de amizade ou cortesia.

— Guerreiros brancos eles são. — Falou Kalandu. — Ameaçam com estranhas armas. Melhor nós voltar.

Escutam um grito vindo de uma das pirogas na praia. É um guerreiro branco, que se aproxima correndo. Ao se aproximar, o cacique verifica que sua cor é mais escura, bem parecida com a própria coloração deles, e suas feições são de índio, como a deles.

— Esperem! — Ordena o chefe índio.

O homem escuro chega e dirige-se ao chefe dos brancos na linguagem que Itaki não entende. Mas, em seguida, fala com os índios na sua própria língua.

— Quem é o chefe de vocês?

— Itaki é o grande chefe da tribo Xanxerê. — Responde o cacique.

— Estes são os poderosos lusos. Estão aqui em paz. Querem água fresca, carne de caça e frutas.

— Tribo Xanxerê também ser de paz. Vamos caçar juntos. Poderosos lusos ficarão satisfeitos com muita caça. Água fresca desce do rio. Venham, vamos subir o rio.

Os navegadores não estavam só à procura de alimento e água fresca. Queriam notícias de tesouros, metais e pedras preciosas. O convite de Itaki foi o primeiro ato de uma catástrofe que se abateu sobre a tribo. Inicialmente se mostraram amigáveis, mas logo ficou claro o verdadeiro intuito da expedição dos navegantes brancos. Quando chegaram à taba, revelou-se a cobiça em seus olhares: as mulheres, principalmente as mais jovens, eram agarradas pelos brancos e, naturalmente, os repeliam. Os índios sentiram a animosidade dos brancos. Em seguida, instaram, através do índio que sabia falar com Itaki, pela informação de ouro e pedras preciosas. Também não lograram êxito, pois os índios da tribo nunca haviam notado essas coisas que os brancos demandavam.

— Homens brancos não são bons para índios. Devem sair da taba. — Foi o conselho do velho pajé Mokiara.

Se fora fácil levar os brancos para a taba dos Xanxerês, foi impossível fazê-los voltar. Mostraram aos índios, nas caçadas, o poder mortífero de suas armas e passaram a intimidá-los, ameaçando-os de morte.

— Os brancos não vão embora sem metal amarelo e pedras brilhantes. Também querem levar índias. — Itaki falou aos principais da tribo, reunidos em conselho, na noite de lua cheia. As mulheres passavam com as cabaças de marajoba, que inspiravam os índios antes de suas ações. Entre uma bebida e outra, os índios conversavam, perguntavam-se como fazer para se livrarem dos homens brancos.

— Única solução é levar brancos para a Cachoeira da Grande Pedra. Jogamos os brancos do alto da ribanceira. — A proposta era de Mokapi, cujo nome significa “Homem corajoso”.

— Homem branco não seguirá caminho de sua própria morte. — O pajé Mokiara avisou. — Tenho que fazer poção mágica para homem branco ficar obediente.

— Preparamos uma armadilha. Enganamos dizendo que tem areia amarela, que eles procuram.

— Depois, outros homens brancos virão vingar a morte de seus companheiros. — Avisou o pajé.

A idéia que prevaleceu foi a proposta por Mokapi. O pajé insistiu em fazer a poção mágica. E tudo foi bem conduzido, de maneira que os aventureiros brancos foram conduzidos à Cachoeira da Grande Pedra, distante da oca dois dias de caminhada pela mata. O cacique escolheu sua escolta, quinze companheiros fortes, decididos, mais o pajé, que levava consigo algumas cabaças de kauimkaiapó, a bebida preparada especialmente para os guerreiros brancos.

Os brancos eram dez e não queriam tantos índios na caravana.

— Vamos ajudar os brancos carregar a areia amarela. A areia é muito pesada

Chegaram à Cachoeira da Grande Pedra ao entardecer. Seja por que as areias fossem mesmo douradas, seja pelo efeito da luz do sol poente, o que os brancos viram lá embaixo, nas margens do grande poço onde a cascata desabava, causou-lhes uma alegria inusitada. Mas como se sentiam muito cansados, resolveram acampar ali mesmo, para descerem no dia seguinte até as areias de ouro.

Dois índios haviam caçado um porco do mato e assaram ali mesmo, à beira do rio. Os brancos participaram da comida. Em seguida, foi servida a bebida preparada por Mokiara, que os índios, já avisados, fingiram beber.

Para os brancos, foi um adormecer sem despertar. Os índios ficaram vigilantes, enquanto os brancos literalmente desmaiavam. Na escuridão da noite, silenciosamente, os índios fizeram desaparecer os guerreiros brancos, lançando-os um a um, por sobre a cachoeira. Se a queda de tamanha altura já era mortal, as águas revoltas e fundas do poço auxiliavam a se extinguir, pelo afogamento, a vida dos desgraçados aventureiros.

Como previra o pajé, mais brancos apareceram na taba, uma lua depois do massacre da Cachoeira da Grande Pedra. Agora, vinham em maior número, e os vigilantes colocados nas dunas chegaram cansados, com notícias ruins.

— Grande expedição de guerreiros brancos vem para a taba. Armados com tacapes que cospem fogo.

— Não podemos enfrentar os brancos. Vamos fugir para a mata fechada. Se brancos vierem atrás, os melhores guerreiros sobem nas árvores, e flecham homens brancos.

O abandono da taba foi total. As mulheres com as crianças seguiam Jekitã, que conhecia todos os esconderijos da mata, as grutas e locas onde eles poderiam ficar em segurança. Os guerreiros, armados de arco e muitas flechas nos cestos amarrados às costas, seguiam, fechando a coluna.

O que previram não aconteceu. Os brancos, ao depararem com a taba completamente abandonada, tiveram a certeza de que seus amigos tinham sido vítimas de alguma emboscada, e que os índios haviam fugido. Nem se preocuparam em saquear a aldeia dos índios: tocaram fogo em tudo. Também não se aventuraram a ir atrás dos índios. Assistiram à queima, e como os índios não aparecessem, voltaram à praia.

Os índios viram a fumaça erguendo-se à distância.

— Brancos queimaram taba. — O cacique constatou, com voz triste, a grande desgraça.

Nos dias seguintes, os índios enviados para espreitar os brancos, na praia, vieram com notícias desanimadoras.

— Guerreiros brancos preparam grande expedição. Vêm procurar seus companheiros. Trazem muitas armas.

— Não podemos enfrentar guerreiros brancos. Temos de fugir para mais longe. — A voz do cacique Itaki foi ouvida e teve a concordância de todos.

Começou a grande fuga da tribo Xanxerê rumo ao desconhecido.

A caminhada foi longa. Muitos dias e muitas luas. Exaustiva até mesmo para os fortes guerreiros. Partiram da região das Grandes Dunas, onde ficou a taba queimada: ruínas que em breve a mata faria desaparecer. Não tinham pressa, pois os guerreiros brancos não vinham em sua perseguição.

— Vamos viajar para as terras onde o sol se põe. Até encontrar as margens do Grande Rio, onde ele se encontra com as águas do mar. — O cacique Itaki agia com determinação, sabia bem para onde levar sua tribo.

— Grande Rio é região das Mulheres Guerreiras. Muito arriscado para estabelecer nova taba. — O pajé Mokiara não concordava inteiramente com o cacique, mas foi vencido pela decisão da maioria dos guerreiros.

A Grande Viagem foi organizada de forma a manter os índios unidos e sem que houvesse privação de comida. As mulheres e os índios mais jovens encarregavam-se de transportar a tralha de sobrevivência. Oito índios adultos, os melhores, mais atilados e mais rápidos no manejo do arco, constituíam os batedores, iam à frente, com um, dois dias de avanço, abrindo a picada, descobrindo os trechos menos difíceis entre os morros e descobrindo as melhores passagens para atravessarem os rios. O cacique e mais dez ou doze índios se encarregavam da caça e do abastecimento da tribo.

A caça era abundante e a tribo se manteve bem alimentada. Atravessaram com facilidade grandes trechos de campos e matas ralas, antes de se adentrarem pela Grande Mata. Nessa região, as árvores cresciam muito altas, as copas entrelaçando-se, tampando a luz do sol. O chão, denso de folhagem e material em decomposição, era úmido. A trilha, antes feita sob o sol ou à sombra de matas secas, se transformava em caminhos escorregadios, sóbrios. Chove todas as tardes. As crianças e mulheres se sentem incomodadas pela grande quantidade de insetos. O pajé prepara algumas pastas de barro fino e seiva de algumas plantas, que servem para espantar os insetos.

Quando, finalmente, chegam às margens do Grande Rio, se admiram com a grande extensão de água.

— Grande Rio mais parece o mar sem fim. — Exclamou Jekitã, o filho do cacique.

— Sim, mas a água é doce, boa para beber. Vamos ficar por aqui. — Determinou o pai.

A tribo construiu a taba num local elevado, longe da margem, a fim de evitar que as cheias do rio destruíssem as construções e os roçados. Foram tempos difíceis. Os índios foram atacados por uma estranha doença que os tornava amarelos. O pajé nada conseguia com suas poções e rezas. A pesca deu em rarear, a caça desapareceu.

— Grande Pai não está contente com estabelecimento neste local. — O pajé Mokiara concluiu, como única forma de explicar as dificuldades da tribo.

O cacique, homem atilado, previa que a situação iria ficar cada vez pior, se a população da tribo continuasse a crescer. Logo iriam começar a morrer de fome. Reunido em conselho, advertiu:

— Não podemos continuar crescendo. Devemos oferecer sacrifício ao Grande Pai Tupã.

Por consenso entre todos os mais velhos, ficou estabelecido que toda criança que nascesse, a partir daquele dia, seria sacrificada ao Grande Pai Tupã.

Foi uma decisão cruel. Com a ajuda do pajé, as mulheres tomaram poções e mastigavam cascas de plantas que as tornavam estéreis. Por algum tempo ainda nasceram algumas crianças, sacrificadas no ato, conforme determinação do cacique e seus conselheiros. Com o correr do tempo, os nascimentos cessaram.

Até que um dia Iaçá, a linda filha do cacique, ficou barriguda e deu à luz a uma linda indiazinha. A lei valia para todos, estava em vigor, se bem que há muito tempo não fosse aplicada por falta de nascimentos. O cacique Itaki teve de sacrificar o neto, sangue de seu sangue.

Iaçá fechou-se em sua tristeza. Não saía mais da oca, permanecia dias e dias na rede, sem ânimo para nada. Na sua angústia, pedia a Tupã que mostrasse ao seu pai, o cacique Itaki, uma maneira de evitar novos sacrifícios. Rogava para que a tribo voltasse a ter crianças e pudesse continuar existindo.

Na noite da próxima lua cheia, Iaçá acordou ouvindo um choro de criança. Levantou-se silenciosamente e saiu da tenda, dirigindo-se ao local de onde vinha o débil choro. Qual não foi sua surpresa ao ver sua filhinha deitada ao pé de uma palmeira. Correu para pegá-la e trazê-la para dentro, mas assim que chegou próximo à palmeira, a imagem da filhinha desapareceu. Louca de dor, por perder pela segunda vez a filha, Iaçá abraçou a palmeira e chorou, chorou. Permaneceu assim, em prantos, agarrada ao tronco, por muitos dias, até morrer.

Quando o chefe Itaki, vendo a filha morta, foi resgatá-la para os funerais, percebeu que os olhos da moça, inertes e abertos, fitavam o alto da palmeira, onde se via um cacho de frutinhas pretas. Vendo nisso um aviso, uma mensagem, mandou que as frutas fossem colhidas e amassadas numa grande gamela. O caldo obtido, vermelho brilhante, era um saboroso vinho, que foi distribuído a todos índios da tribo. E mais, a polpa, além de saborosa, revelou-se muito nutritiva.

Os índios passaram a coletar a estranha frutinha, que foi incorporada à sua alimentação. Não demorou muitas luas, e os índios recuperaram a força, a saúde, e as índias começaram a ficar barrigudas novamente, a conceber novos indiozinhos.

O Cacique Itaki reuniu o conselho.

— Vamos agradecer Grande Pai Tupã pela volta da saúde à tribo Xanxerê. A fruta que salvou a tribo fica conhecida como Açaí, que é o nome de minha filha, ao contrário.

Assim conta a lenda: o Açaí apareceu pelo sacrifício de Iaçá para sobrevivência da grande nação dos índios Xanxerês.

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ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 12 DE FEVEREIRO DE 2002

CONTO # 142 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 12/04/2014
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