A donzela encantada dos sete véus
Acordei hoje virado num traque, pense e nem vem que não estou pra amassar barro nem pra alisar chifre, tá entendendo? Um pesadelo desses que tive essa noite, só contando pra não esquecer. Ri da desgraça dos outros é muito fácil, quero ver você sorrir se olhando no espelho... Desejo que caia todos os dentes de sua boca e que no céu de lá não tenha nenhuma estrela. Só me lembro de nem lavar os pés quando cheguei pra dormir. Fui até a cozinha, bebi uns caroços de água e de pé junto capotei na cama. A veia não tava em casa não, eu acho que tava na casa de alguma vizinha rezando, quando penso que não, já de butucas fechadas, senti quando a porta do quarto se fechou de uma vez. Ainda lembro-me de um arrepiou na coluna subindo e descendo, danou-se, só me lembro disso mesmo. Queria levantar e não sentira as pernas. Vontade de me beliscar e nada, os dedos não respondiam. Era uma nuvem só nos meus olhos... Quando penso que não e nem sei se pensei mesmo ou é mesmo invenção de mim, uma voz doce pelo quarto: João, João Ninguém da Silva! Até debaixo do sovaco tudo ficou arrepiado e como diz o dito popular, fiquei travado que não cabia um cabelo, pense! Primeiro foi uma escuridão que não tinha tamanho, seguida de um nevoeiro, aí eu logo pensei – danou-se! E o sertão agora virou sul foi?! – dormindo, de olho fechado, dentro do pesadelo ainda fechei mais ainda meus olhos e quando resolvi abrir, não conseguia, parecia que tinha ficado cego, foi mais desespero ainda! Quando pensei no desespero, um vulto de mulher bonita foi aparecendo, aparecendo e logo vi que não tava cego não, tava era enxergando até demais. Pois bem! Mas não conseguia ver o rosto direito não. Do corpo eu me lembro bem. Era uma vestimenta vistosa e de encantamento, quando a voz saiu parecendo uma lira, dizendo que para que ela pudesse me revelar o rosto eu teria que passar por algumas provas e queria saber se eu estava disposto e logo respondei sem pestanejar! Não teria prova que eu não pudesse fazer, poderia dizer quantas quisesse! Sempre escutei que de esmola grande, o santo tinha que desconfiar, mas já há tanto tempo casado com uma veia enrugada, banguela, um sinal na venta e com cheiro entranhado de cebola, pois está tudo que ela quisesse seria moleza. Pediu que eu me levantasse, sem fazer barulho, fosse lá ao muro, pegasse uma picareta e partisse sem ser visto até o cemitério! Aquilo deu em mim um começo de trombose! Já sentia o coração querendo sair pela boca e o bagaço sendo arriado pela boca de baixo. Em instantes pensei em desistir, mas a voz doce do vulto de novo em meus ouvidos dizendo que era apenas um teste de coragem, para ver se eu era valente o suficiente para estar do lado dela. Cheguei a propor só em pensamentos que só iria se ela me deixasse ver o rosto dela e na bucha foi logo dizendo que se passasse na prova iria libertá-la de um dos véus e logo conseguiria ver seus lindos cabelos! E quantos véus aquela danada deveria ter? Quando paro de pensar, outra resposta: _ sou a donzela encantada dos setes véus. Uma antiga vizinha invejosa havia posto aquele quebranto nela por ser bela e a filha feia. Secou o leite de minha mãe, a fez definhar até a morte, roubou todos os pertences de joia da família e enterrado numa botija e sobre ela a praga dos sete véus, um para cada dia da semana. A tal moça falava tão emocionada que sentia os pingos de água vindos de sua boca e quando resolvi me levantar, tava todo molhado nas calças, pensei até que fosse uma goteira, mas não vi o barulho da chuva. Meti os pés da cama, vi que a casa estava toda escura e saí sem fazer barulho, peguei a picareta na cozinha, abri a porta dos fundos, e quando pulei o muro, a voz me pediu que esperasse. Pediu que eu passasse por trás da matriz, atirasse uma pedra no sino da igreja porque já iria dar as doze badaladas da meia noite e quando o sino da igreja toca, os espíritos maus dormem e o cemitério fica tranquilo. De pensamento disse que era um desaforo, um sacrilégio e como era um homem temente a Deus, não iria brincar com essas coisas não. Mas a danada era osso, na ponta da língua já ia dando resposta, dizia ser por uma causa justa, Deus iria saber entender, porque depois eu deveria tirar os sapatos e de pés descalços puxar no rabo e acender um traque no primeiro cachorro que eu encontrasse para fazê-lo latir e uivar e assim afastar as almas mais teimosas. Segundo a moça, elas morriam de medo do latido do cachorro e com isso eu poderia fazê-la tirar dois lenços de uma vez. E assim fui fazendo. A moça tirou o lenço do cabelo, tirou o lenço do pescoço e os dois lenços dos ombros. Era uma formosura! O cabelo comprido e enrolado, os ombros cobertos por broches de ouro e o pescoço todo cheio de um trancelim brilhoso. Enquanto isso, o padre na janela do quarto de espingarda na mão, dando ordem de aparecer, se não fosse assombração ao filho de rapariga que o havia acordado naquela hora da noite; o cachorro latindo rua acima e rua abaixo e várias luzes das casas se acendendo e alguns curiosos nas calçadas querendo saber o que estava acontecendo. Na porta do cemitério, ela me pediu para que rezasse um pai nosso de traz para frente. Uma tremedeira me acometeu que de longe até surdo ouvia o barulho dos meus dentes a se baterem. Danou-se, depois de velho fazer bruxaria! E a voz suave nos meus ouvidos a dizer que eu era um homem de coragem e somente aos sábios e corajosos era dada a dádiva de saber as coisas pelo contrário. Rezar o pai nosso de traz para frente não era tarefa fácil! E eu que só tinha ido à igreja até o dia da comunhão, ainda quando criança! Percebi que o tempo se formava e quando penso que não, já estava eu a começar a reza... méma lam od em-iarvil sam... Pois não é que os portões do cemitério começaram a se abrir e eu me senti o próprio Ali babá! E o quinto véu caía por terra a mostrar a testa e os olhos daquela bela donzela ali na minha frente. E no encontro dos nossos olhos, não é que sem nenhum som ela me dizia: - Coragem, João, você já está chegando lá! Agora eu teria de andar para trás em passos pequenos, contando de duzentos até zero, também de traz para frente e a cada cinquenta contadas cavasse um buraco até chegar debaixo do pé de castanhola por detrás da capela do cemitério. E assim eu fiz, sem sentir os pés, as pernas, nem as minhas mãos. Benzia-me de vez enquanto e já tinha perdido o número das mijadas dadas até aquele momento... No momento que chegamos a cento e cinquenta passos ela mandou que eu parasse, perguntou se eu queria parar porque muitos já haviam tentado, mas nenhum conseguira chegar até ali nem ir até o fim. Disse que ali, antes, era a casa da família dela. No lugar da capela era a casa grande e debaixo da árvore onde tem uma bela roseira, no lugar da roseira havia uma botija enterrada com todo o ouro da família dela. Se ele fosse bom mesmo de coração, corajoso e sábio, ele deveria ir até lá, encontrar a botija, ficar com o ouro e desencantá-la do feitiço da vizinha invejosa! Quando eu me virei, foi grande minha surpresa, o sexto véu já tinha caído e o último apenas lhe cobria a boca... Voltei num instante e cheguei o mais depressa possível no lugar indicado. Encontrei a roseira e passei a meter o picarete para cima. No começo foi difícil, mas mesmo assim, erguia os braços para cima, eles desciam para baixo... Várias vezes o mesmo movimento até que o último véu caiu, um brilho muito luminoso e um clarão de doer nos olhos. Encontrei a botija, me baixei para pegá-la, quando a tive em minhas mãos e quis abri-la, diante de mim a bela donzela desencanta... Era uma formosura, pensei em beijá-la, fiz bico de beijo e quando pensei em sentir os lábios quentes dela, um balde de água fria era atirado sobre mim. Eu, de pé na cama, com uma garrafa de aguardente na mão, todo melado de graxa, mijado até umas horas e a assombração de minha mulher, de boca banguela, toda assanhada diante de mim a gritar: Acorda, demanda de urucubaca, cê né besta não! Bebe pra virar Tarzan! Pois vá pintar de gorila em outra selva, na casa minha casa mesmo não! De cabeça baixa desci da cama sem dizer nem piu! Chegando no banheiro me olhei no espelho e vi a tal donzela me olhando e sorrindo pra mim, quando penso que não, pois não era o despacho de macumba de minha sogra que a sogra do cão tinha encantado! Aos poucos, de uva foi se transformando em maracujá, toda enrugada! Daí em pensei: A cachaça de ontem só podia está estragada, ah se estava! Daí dizer que acordei hoje virado num traque, pense, e nem vem que não estou pra amassar barro nem pra alisar chifre, tá entendendo? A primeira pessoa que encontrei ao sair de casa foi o cambista, mirei num bicho e atirei no bicho errado! Contei essa, tá contado. Se quiser que conte outra, terá de pagar dobrado.