HISTÓRIA DE SEU LUCAS, O AÇOUGUEIRO
Carlinhos ajudante do açougue
— Corre, Carlim, vai espantar os urubus!
Carlinhos sai, um corisco na direção do quintal, onde dois urubus bicam as peças de carnes estendidas a secar, no varal de arame grosso.
— Xííííííp! Xííííííp! — Ao mesmo tempo que emite um assobio estrídulo, as perninhas curtas pulando sobre as pedras, agita os braços, numa frenética tentativa de espantar os urubus, que só abandonam as carnes quando o garoto está bem próximo.
— Porqueiras, estão acostumados, né? Tomem! — O garoto pega pedras no chão e atira contra as aves. Elas insistem em permanecer por perto, pousadas na cumeeira da casa. Erra na pontaria, mas as piratas se assustam e voam para longe.
Carlinhos é ajudante no açougue do Seu Lucas. Na verdade, é ajudante do ajudante. Leandro é quem fica responsável pelo açougue quando o dono sai. Carlinhos não gosta de estudar, está no quarto ano do grupo e o pai conseguiu que ele passasse no açougue as horas em que não está na escola.
— Assim, vai aprendendo um ofício. Quanto mais cedo começar, melhor.
As obrigações de Carlinhos são poucas, e ele até gosta: limpar os ossos de sebos e restos de carne; entregar carne em duas pensões; ajudar Leandro na limpeza do açougue, lixar, com lixa-de-ferro, os ganchos, as peças de metal, os pratos e os pesos da balança; passar areia fina no tampo de mármore do balcão e dar alguns recados para as namoradas do Leandro (sem que seu Lucas saiba).
Ah, sim, também está sob sua responsabilidade espantar os urubus que infestam o quintal, sempre que seu Lucas estende as carnes salgadas para secar. Nas manhãs das quintas-feiras é pior: é quando o açougueiro, tendo levantado mais cedo, corta as carnes que se acumularam desde segunda-feira na enorme geladeira a gás, salga com sal grosso e as estende ao sol, em longos varais no quintal da casa. De vez em quando, se distrai, mas Leandro, esperto e responsável, está sempre atiçando Carlinhos contra os urubus.
Quando expostas pela primeira vez ao sol, as postas de carnes exalam um cheiro forte, que atrai as agourentas aves. Na sexta-feira, tendo passado todo o dia anterior ao sol, estão enegrecidas, e talvez pelo sal entranhado, as aves desaparecem. Então, começam as moscas, aos milhares. Estas, não há como espantar.
— Fique de olho nas varejeiras. Quando vir alguma, me avise. — Leandro determina a Carlinhos, com ares de patrão.
As moscas varejeiras depositam seus ovos ali mesmo, onde se fartam da comida. E podem estragar muitas mantas. Seu Lucas é cuidadoso: aos sábados, a recolher a carne já bem enxuta, examina peça por peça, a fim de detectar algum foco de larvas varejeiras. A carne-seca que vende em seu açougue é a preferida na cidade, devido aos extremos cuidados que ele tem.
Carlinhos tem onze anos. Se por um lado não gosta da escola, por outro, aprecia estar perto dos adultos, perguntando, entrando nas conversas, muitas vezes sendo inconveniente.
— Ara, garoto, vai brincar, este não é assunto de criança.
Expulso das rodas dos mais velhos, não obedece, fica por ali escutando, prestando atenção. Gosta de ouvir os comentários do pessoal sobre a guerra que acontece na Europa. Outro dia, ficou alarmado ao ouvir falar de bombas atômicas que arrasaram cidades. Aprecia as freguesas que lhe pedem para levar as carnes, lingüiças ou miúdos até suas casas. Enquanto as acompanha, puxa assunto, pergunta coisas e as mulheres geralmente gostam de conversar. Dona Dolores é a mais falante, já lhe contou coisas do arco-da-velha, principalmente a respeito de sua filha Antonieta.
— Ela é muito desobediente. Não me ajuda em nada, só pensa em namorar. Ontem de noite.... — e então Carlinhos fica sabendo que a filha chegara tarde da noite, o namorado veio com ela até a porta da sua casa, uma provocação, ela não tem idade para essas coisas, o pai não se incomoda, sobra tudo pra mim...
Leandro, outro ajudante do açougue de seu Lucas
Com Leandro, Carlinhos aprende muitas coisas. Leandro já é rapaz, tem 17 anos, e no ano que vem vai fazer o Tiro-de-Guerra.
— Vou entrar pro exército e vou pra guerra. — O rapaz bazofia a possibilidade de ir para o front, sem saber realmente do que esta falando.
— Cê besta, Leandro! Tá morrendo muita gente por lá.
— Vou matar um punhado de alemão, cê vai ver só.
Nas tardes de pouco movimento, entre meio-dia e três horas, os dois assentam-se na soleira da porta principal e espicham a conversa. Leandro lê livros, sabe de muitas histórias, que conta para Carlinhos, misturando o lido com o que já sabe, de tal forma o garoto jamais sabe distinguir o real do inventado.
— Juro que é verdade. Aconteceu com o Manoel da Venda. — Na ânsia de se fazer creditado, o rapaz atribuía aos conhecidos as peripécias dignas de Pedro Malazartes ou outros personagens legendários.
Leandro tinha um livro. Grosso, com ilustrações fotográficas e desenhos, cartonado, a capa de cor escura com palavras douradas na frente e na lombada: “O Raiar de Um Novo Dia”. Ensebado de tanto manuseio. A fonte de muitas histórias fantásticas de Leandro. Parece que era sua única leitura. Não se incomodava com revistas, bem ao contrário de Carlinhos, que adorava gibis.
O livro de Leandro era literatura séria. Nas poucas vezes em que Carlim folheara o calhamaço, pôde notar que se tratava de coisas de religião: retratos de igrejas, desenhos que representavam Moisés, Sansão e Jesus. Uma impressionante ilustração mostrava a travessia do Mar Vermelho, história do Velho Testamento, que Leandro já lhe narrara com detalhes inseridos por ele, Leandro, como se testemunha fora do formidável acontecimento.
Seu Lucas, o açougueiro
Seu Lucas era uma figura misteriosa. Alto, magro, a face mostrando os ossos, cabelos pretos e lisos, as sobrancelhas muito grossas enegrecendo ainda mais os olhos encravados em profundas órbitas. Uma cicatriz, correndo pelo lado esquerdo do rosto, davam-lhe um aspecto sinistro, que Carlinhos associava a Drácula, um vampiro das histórias que lera no Globo Juvenil.
Morava na casa cuja sala da frente fora reformada e transformada em açougue. A antiga construção ficou sendo, ao mesmo tempo, residencial e comercial. A parte residencial era dos tempos coloniais, paredes de pau-a-pique, sem reboco, com frestas e buracos. E o cômodo do açougue, adaptado, tinha paredes de tijolos, azulejadas até a altura de metro e meio, o teto forrado e piso de mosaicos modernos.
Não tinha família, morava só. Zeferina, preta velha de cabelos brancos, vinha todos os dias para cuidar da casa, fazer a comida, lavar e passar a roupa. No mais, era um homem do qual pouco se sabia. Ninguém conhecia seu passado. Conversava apenas o necessário para atender a freguesia e fazer suas compras de rezes para suprir seu açougue. Todas as tardes, após o almoço, deixava o estabelecimento aos cuidados dos dois ajudantes e ficava dentro de casa.
— Puxa, seu Lucas é mesmo esquisito. — Carlinhos comentou com Leandro.
— O homem é perigoso. Já matou um. — Leandro sabia das coisas.
— Cê besta, sô! Deixa de ser mentiroso.
— Sei da história, um dia lhe conto.
História de Seu Lucas, o açougueiro
Um dia Leandro contou:
— Seu Lucas veio de Goiás. Quando se deu o fato, era retireiro na fazenda de um tal Quincas Dantas. Antigo fazendeiro por aquelas bandas, proprietário de terras de pastaria de primeira, pastos limpos, de capim gordura que pinta de roxo as campinas e as encostas da morraria. Com muitas cabeças de gado, novilhos de engorda, vacas leiteiras, novilhas, bons touros de reprodução. Era viúvo, na ocasião em que caiu de dengues por Das Dores, abandonada pelo marido, Raimundo.
Essa Maria das Dores era uma mulher de muitos homens. Sua história era conhecida, corria a região. Filha de Gumercindo, vaqueiro empregado de Quincas Dantas, em cujas terras vivia. Morenaça de grossas coxas e braços roliços, atrevida desde menina, tornou-se mulher danada, fogosa, dessas de acender paixão em qualquer homem que lhe passe por perto. Gostava de tomar banho no poção, formado pelo rio Claro, num de seus meandros caprichosos, um pouco acima do bebedouro dos animais. Os vaqueiros observavam-na nessas ocasiões, saindo da água com a roupa grudada no corpo viçoso. Ela sabia que estava sendo observada, e caprichava nos meneios, nos mergulhos, na exibição de seu corpo.
Maria das Dores conheceu Raimundo na escola do distrito. Alunos crescidos no meio da criançada, que naquela época não havia escolas noturnas para adultos, começaram um namoro animado. Eles se fartaram de beijos e abraços nas noites quentes, à saída da escola. Mas Das Dores já tinha um “caso antigo” com Lucas Ximango. Não falou nada, claro, com Raimundo, com o qual se casou. Raimundo conseguiu trabalho na fazenda de Quincas Dantas. Para Das Dores não foi difícil manter o romance antigo com o retireiro Lucas, mesmo depois de casada. Lucas Ximango tinha a fama de elemento valentão e mau caráter. Assim, quando Raimundo descobriu que a mulher o traía, com medo da fama de seu rival de cama, fez sua mala com poucos pertences e sumiu no mundo.
Lucas Ximango levou Das Dores para morar com ele, numa casa de agregado na fazenda. Das Dores continua com suas idas ao poção do Rio Claro, onde, numa tarde, é vista pelo fazendeiro, que se engraçou da mulher. Numa festa de igreja, no distrito de Beija-Flor, Lucas Ximango e Das Dores estão se divertindo, ela exuberante como sempre, atiçando as vontades dos homens e as raivas das mulheres, quando chega o fazendeiro. Viu Das Dores na barraca do leilão, onde Zé Sanfoneiro e Lilico animam um arrasta-pé. Convidou a apetecível Das Dores para uma dança, mas Lucas, ao seu lado, recusou por ela. Quincas ignorou a negativa e arrastou a morena para o centro do arrasta-pé. Lucas Ximango, afrontado, abandonou a festa pisando quente.
— Seu marido não gostou do meu convite. — Quincas comentou com Das Dores.
— Ele não é meu marido, não.
— Então não pode reclamar de nada. — Rindo, Quincas apertou ainda mais a cintura de Das Dores.
A noitada continuou alegre. No final, Quincas ofereceu-se para acompanhar a mulher até sua casa.
— Sei não. — Ela começou a recusar — Lucas não vai gostar de me ver chegar com o senhor.
— Qual o quê! Sei como tratar gente desse tipo.
Na charrete de Quincas, lá vão os dois pela estrada clara. As ancas de Das Dores roçando o homem ao seu lado. Bem longe da vila, ele desce e ajuda a mulher. Ambos se dirigem para a beira da estrada, onde se deitam. Abraçados e entretidos no seu amor, não percebem a aproximação sorrateira de Lucas, que chega empunhando uma garrucha.
— Te falei pra não dançar cum ela. Agora tou vendo que tu é mesmo desafinado. — Sem mais dizer, foi disparando a arma.
— Ei, peraí, home de Deus! — Tentando levantar-se, Quincas embaraça-se nas próprias calças, e cai quase aos pés de Lucas, que o atinge num tiro certeiro, vazando-lhe o olho, prostrando-o sem vida na vala da estrada.
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A porta dos fundos do açougue, que acessa a casa, é aberta e entra o açougueiro. Os dois se levantam de inopino e se põem a trabalhar.
No dia seguinte, na habitual ausência do patrão, Carlinhos chega perto de Leandro e pergunta:
— Então, como acabou aquela história que cê me tava contando ontem?
— Psiu! Cara, se o seu Lucas souber que lhe falei alguma coisa, ele me mata.
— Mas tou curioso. A Das Graças voltou pra casa com ele?
— Voltou, sim. No caminho, foi percebendo que o seu Lucas tava que nem louco, ameaçando de morte também ela. O medo foi crescendo, crescendo, ela pensando como se livrar de Lucas. Não dormiu direito. Quando viu que ele estava estirado, ressonando, pegou uma tesoura e pensou em matá-lo. De pé, ao lado da cama, estava indecisa quando ele abriu os olhos. Tonto de sono, levantou-se e segurou-a pelos punhos, não a tempo de evitar que ela lhe desferisse um golpe, que o atingiu no rosto, cortando a cara de alto a baixo.
— Por isso ele tem aquela cicatriz...
— Pois é. Aterrorizado, espanca a mulher até deixá-la caída, quase desmaiada, no chão. Cuidando do sangue que escorre pelo rosto, pensa rápido.
Matei o patrão, e todo mundo viu na festa a desfeita que essa china me fez. Quando descobrirem o corpo lá na estrada, vão me procurar. E essa puta me traindo com ele. Com quantos homens ela já me pôs as guampas?
Arrumou suas coisas, arreou seu tordilho e deu no pé.
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— Como é que você sabe dessa história toda? — A curiosidade de Carlinhos não tem fim, quer saber de tudo.
— Puxa, Carlim, cê quer saber de tudo, hein?
— Vai, conta. Foi seu Lucas que te falou?
— Ara, deixa pra lá. Li num livro.
— Que livro?
— Ara, Carlim, Sei lá. Finge que nunca te contei nada, tá entendendo?.
Assim, nunca fiquei sabendo da história do seu Lucas,o açougueiro.
Antonio Roque Gobbo –
Belo Horizonte, 16 de outubro de 2001.C
ONTO # 121 Da Série Milistórias