SUSPIRO ROUBADO
A mãe gritou para um de seus cinco filhos que brincavam no quintal:
- Titaaaa!!! Titaaaaa!! Venha rápido piá!!!
O garoto veio correndo, sujo de terra:
- lave estas mãos e vá lá correndo na bodega do Gastão comprar um quilo de fígado de porco pra janta!
O garoto foi no tanque de lavar roupa, abriu e fechou a torneira rapidamente, as poucas gotas de água que conseguiram sair não foram suficientes para tirar a terra das mãos. Ele secou as mãos na camisa, que para sorte ou azar de sua mãe, já estavam sujas.
Pegou o dinheiro que estava na mão da mãe e perguntou:
- posso comprar um doce?
A mãe respondeu sabendo que sobraria poucas moedas:
- primeiro compre o fígado e se sobrar você pode comprar um doce para vocês!!
Tita foi correndo até a bodega do Gastão. Não era longe, na verdade era só atravessar a rua, a bodega ficava de frente a casa. Tita nem olhou para os dois lados antes de atravessar a rua. Não existiam tantos veículos que transitavam pela rua na década de 70 e 80, algumas carroças talvez.
O garoto comprou o fígado pagou e sobrou troco que deu para comprar doce que teria que dividir com os outros três irmãos e uma irmã.
Voltando com o fígado de porco embrulhado e o pacote com doce, próximo do portão da casa, sem querer o pacote com doce caiu. Ele olhou, pensou um pouco, ajuntou o pacote e foi para a cozinha entregar o pedido da mãe.
Ele falou:
- tá mãe o fígado e deu pra compra um suspiro!
Suspiro. 28 gramas na média. Um doce quadrado feito com leite, açúcar, glucose de milho e conservante ácido sórbico. Ácido Sórbico? Não pergunte o que é, pois eu vi numa receita na internet. O suspiro quadrado vinha nas cores branca, vermelha ou amarela.
A mãe agradeceu e falou:
- chame teus irmãos que vou dividir o suspiro!
Tita foi até a porta e berrou chamando seus irmãos para comer o suspiro de cor amarela.
O dinheiro era curto naqueles tempos, malmente os pais conseguiam sustentar a casa, doce era artigo de luxo e os pais tinham que se desdobrar para conseguir trazer algum na compra do mês. Mas quando a criançada ganhava um doce, uma bala sequer, era uma festa, aquela algazarra, aquela alegria, os olhos daqueles pequenos pirralhos sujos de terra brilhavam de satisfação e de contentamento. Claro que algumas vezes alguns faziam birra porque o pedaço do outro era maior, ou que um queria aquela cor que estava com o outro. Nada que umas reprimendas bem dadas não resolvessem a questão, mesmo que o beiço da criançada demorasse em diminuir.
Todos os cinco filhos rodeando a mesa, pareciam abelhas no mel. Trabalho difícil para a mãe dividir em cinco pedaços um doce, ainda mais em pedaços iguais e os fiscais sempre em cima. O suspiro, pelo seu formato e forma, era um doce um pouco mais fácil de dividir. Agora dividir aquele doce de abobora em formato de coração em pedaços iguais? Ou maria mole? E o sorvete seco que vinha com bexiga?
A mãe com a faca na mão para dividir o suspiro, o Tita falou:
- mãe, acho que não vou querer meu pedaço!
A mãe olhando desconfiada para ele, disse pensativa:
- ué, ué, ué... como assim não vai querer??
Ele respondeu disfarçando:
- tô sem vontade!
Diante da algazarra que surgiu dos outros irmãos, cada um gritando mais alto, querendo o pedaço que sobraria a mãe bradou:
- quietos!!! senão ninguém vai ganhar nada... eu vou dividir em quatro pedaços agora...
Enquanto a mãe dividia um único suspiro em quatro partes, de fininho Tita saiu. Na euforia e algazarra, ninguém percebeu que ele escapuliu da cozinha. Depois da divisão, a mãe foi cuidar do fígado de porco que iria servir para acompanhar o feijão, arroz e batata para o jantar. As crianças se divertiram comendo um pedaço de suspiro, deixando migalhas espalhadas pelo chão.
Após devorarem o suspiro, seus irmãos satisfeitos e agradecidos voltaram a brincar no quintal. Onde Tita estaria? se perguntavam enquanto brincavam.
Tita apareceu depois de algum tempo, com um sorriso largo que quase não cabia no seu rosto e foi brincar com seus irmãos.
...
Quando Tita deixou a cozinha, próximo ao portão parou de repente e apreensivo olhou para os lados e para trás, não viu ninguém, se abaixou, esticou a mão para baixo de uma folhagem pegou algo e saiu correndo para o fundo escondido do quintal.
"Havia dois suspiros quando saiu da bodega do Gastão."
Sentou no chão, recostou-se num pé de uma árvore qualquer, e levou a boca um suspiro de cor rosa.
"Quando o pacote caiu da mão sem querer, um suspiro saiu do pacote."
Deu-lhe uma bela mordida com gosto naquele suspiro rosa.
"Ele pegou o pacote com o suspiro amarelo e empurrou o suspiro rosa para baixo de uma folhagem."
Com os olhos fechados, a boca cheia, sentia derreter o açúcar. Degustava aquele momento sozinho, sentido o prazer de comer um suspiro inteiro. O açúcar derretendo e escorrendo pelo canto da boca. Babava. Que delícia. Que sensação mágica. Inebriante. Entorpecente. Ficou algum tempo sentado sentindo o doce sabor de um suspiro.