O MILAGRE DE SÃO MARMELO

Era bem diferente de suas três irmãs. Enquanto Ermelinda, Esmeralda e Erundina se esfalfavam nos afazeres do sítio do pai, Expedita tinha mil-e-um expedientes para se safar da lida diária. Um dia estava com dor de cabeça, no outro acordava com enjôos, no dia seguinte era uma dor no pé ou nas juntas que não lhe permitia sequer sair da cama.

— Vamos consultar o doutor Caldeira. — Dona Escolástica, a mãe, insistia em levá-la ao médico na cidade.

— Carece não, mãe, este incômodo passa logo. — Respondia numa malemolência de fazer dó.

As dores e o mal-estar terminavam, realmente, após o almoço. Mas ficava um resquício, a moça não tinha ânimo para nada. Permanecia em repouso, assentada na varanda, olhando a movimentação dos animais e do pessoal, durante as tardes mormacentas.

O pai Epaminondas deu um ultimato:

— Vai com a mãe ver um médico. Aproveita e passa na Carlota benzedeira. Faça qualquer coisa pra se livrar dessa mandriice sem fim.

Intimada e intimidada, foi com a mãe ao consultório do doutor Caldeira. Examina daqui, apalpa dali, com muito cuidado e na presença da mãe, perguntas sobre isso e aquilo.

— A Expedita está precisando é de exercício, de caminhar. Um servicinho leve dentro de casa, até se acostumar, e essa lezeira há de passar.

— Quem sabe o doutor não receita um fortificante, um remedinho pra espertar minha filha?

— Ela está firme e forte, não necessita de remédio.

A consulta ao médico mudou a vida de Expedita. Não pelos conselhos do experiente doutor, mas por motivo bem diverso. Porque, na volta ao sítio, mãe e filha na charrete, foram acompanhadas pelo Abnoel, filho de Jeremias, seus vizinhos mais próximos. A sitioca de Jeremias ficava a três léguas, subindo pelo Morro da Arapuca.

Encontraram-se à saída da cidade e seguiam pela mesma estrada. O moço ia montado em imponente alazão, fazendo bela figura, impressionando Expedida e a mãe tanto pelo garbo como pela educação.

— Posso acompanhar a senhora e a menina? — A pergunta respeitosa cativou logo as duas.

A mudança na vida de Expedita começou ali. A moça continuou na mesma, sempre com dores, enjôos, contínuo mal-estar. Mas Abnoel deu em visitar sítio de Epaminondas, a princípio sob alguns pretextos de assuntos agropecuários, mas logo manifestando seu interesse por Expedita. De tal forma que dessas visitas surgiu um namoro (para grande despeito de Linda, Alda e Dina, como eram carinhosamente tratadas em família, todas em idade casadoira).

Epaminondas advertiu o rapaz, quando ele pediu a mão de Expedita:

— Olhe, seu Abnoel, a Dita é cheia de dengues, não gosta muito de trabalhar.

O amor é cego e cego de amor Abnoel ignorou as palavras do futuro sogro, que, enfim, abençoou a união. Se ele quer a carga, que prepare o lombo. Pensou o pai, se eximindo de toda a responsabilidade.

Eis, seis meses depois, o casal Abnoel e Expedita no altar da Matriz de Córrego Liso, unidos em matrimônio, num casamento simples como convinha aos pequenos sitiantes. De onde foram diretamente para o ninho nupcial: uma casinha construída nas terras do pai de Abnoel, do outro lado do Capão das Araçás.

Logo no dia seguinte, antes mesmo de se levantar, Expedita se queixa.

— Ai, bem! Que dor de cabeça! Tou que num agüento nem sair da cama.

— Deixa que eu faço um chá de erva-cidreira e lhe trago já-já.

Prontifica-se Abnoel em fazer o chá, bem como em preparar todo o café da manhã. Ao sair para a lida do dia, Expedita permanece em repouso. Abnoel ajuda o pai, tocam o sítio juntos, afinal ele é o único filho de Jeremias, e assim vão levando a vida. Quando chega para o almoço, Expedita ainda está repousando, no quarto, sem disposição para nada. O marido providencia a refeição, tem habilidades culinárias. Ela come com apetite e parece estar melhor quando ele sai, após o almoço, para capinar o trato de terra cultivado com milho. Ao entardecer, volta cansado da lida e encontra a esposa tal qual a deixara: sentada na sala, em repouso, tranqüila mas ainda sem disposição para nada.

— Não se amofine, querida. Faço um caldinho de mandioca em dois tempos.

E fez a janta. Um caldo de mandioca esperto, com pedaços de carne de porco e temperada com manjericão. Expedita tomou, repetiu e lambeu os lábios, de tão bom.

No dia seguinte, acontece tal qual o dia anterior. E assim vão se sucedendo os dias, as semanas. Abnoel passa a cuidar da casa, da limpeza, das refeições, de tudo — sem prejuízo da ajuda ao pai. E Expedita, coitada, com as dores: de cabeça, nos braços, nas pernas, nas juntas. De vez em quando, para variar, dor de estômago e palpitações.

Uns três meses depois de casados, Abnoel encontra-se com Calimério, que passa pelo sítio, a caminho dos campos do Espraiado, região onde colhe ervas medicinais. Conversa vai, conversa vem, Abnoel conta para Calimério da sua vida depois de casado, da mulher que sofre de dores todos os dias, que não tem disposição para nada, nem mesmo para jogar milho para as galinhas no quintal. Não sara, não toma remédio, nem piora.

— Uai, meu fio, carece de eu visitar dona Expedita.

— Vamo lá agora mesmo, se o senhor puder.

E foram. Calimério conversa muito com Expedita. Por sorte, durante a visita ela está bem disposta, falante, cordial. Até mandou Abnoel passar um café fresquinho para seu Calimério.

O ervatário, na sua simplicidade e com sua experiência de vida, nota que ali tem coisa. As dores sem-fim da jovem esposa não têm explicação. Ou, têm sim, uma explicação, só uma, e muito simples. Enquanto saboreia o cafezinho com pães-de-queijo, tudo feito por Abnoel, vai explicando o que deve ser feito.

— Só tem um remédio, aliás, nem é bem remédio, é uma simpatia. Cês já ouviram falar da simpatia de São Marmelo?

Não, os dois jamais ouviram falar desse santo, quanto mais da simpatia a ela atribuída.

— É assim: o Abnoel vai ao pomar e corta uma vara bem retinha, de qualquer árvore que dá fruta doce. Carece ser uma varinha bem reta, lisinha, de uns dez palmos de cumprimento. Alisa bem a vara, tira as folhas, apara os nós, de forma que ela fica bem lisinha. Amanhã bem cedinho, quando ocês acordar, dona Expedita diz onde que está doendo. Aí, o Abnoel bate com a varinha, bem de leve, no local da dor. Falando:

Em São Marmelo ponho fé!

Com esta varinha de marmeleira,

Com esta varinha curo Expedita

De dor, de medo ou preguiceira.

— A dor vai passar na hora. Se não passar, o marido vai dando mais umas pancadinhas, sempre de leve, não é pra machucar. Até a dor passar. Ah! Tem outra coisa: a varinha tem de ficar sempre com o marido, e tem de ser usada sempre que a dor voltar, seja de dia ou de noite.

Tão logo Calimério se despediu, Abnoel foi ao pomar e escolheu uma vara como a recomendada. Expedita observava calma e atenta enquanto o marido limpava, com o canivete, a varinha que iria curá-la. Só de saber da simpatia, já está se sentindo melhor.

No dia seguinte, Expedita levantou-se lépida, foi cuidar de coar o café, limpar a casa, etecétera e tal. Nunca mais se queixou de dor alguma. A vara de marmelo ficou encostada atrás da porta, jamais foi usada por Abnoel. A simpatia de São Marmelo curou completamente Expedita.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 28/JUNHO/2001

CONTO # 99 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/03/2014
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