PRUDÊNCIA, VOLTE!

A cavalgada estava insuportável. Pelo caminho que subia pela Serra do Mar, a caravana de soldados e amigos do Príncipe seguia com dificuldade. As chuvas recentes haviam transformado o caminho numa série de armadilhas: os cavalos, todos ferrados, seguiam na frente e amassavam a terra com as folhas , transformando o leito num lamaçal pesado. As mulas e os escravos, que seguiam a pé, na retaguarda, resvalavam pela lama, escorregavam e perdiam o equilíbrio. Por diversas vezes, animais rolaram pelas ribanceiras íngremes que margeavam a estrada e tiveram que ser resgatados com cordas.

O tempo continuava instável. Chuvisqueiros alternavam-se com períodos curtos de sol, e no meio da manhã um aguaceiro abatera-se sobre a coluna. Haviam partido de madrugada da vila de Santos. No começo da viagem, muitos cavaleiros estavam insones e com enjôos. A noite anterior fora animada, a Marquesa proporcionara uma festa animada, que começara com um banquete digno de um rei, e continuara noite adentro, com músicos, cantores, truões e declamadores. A comida foi de primeira. Peixes, frutos do mar, saborosos quitutes preparados pelas excelentes cozinheiras empregadas pela gentil dama. Uma moqueca de siri com camarões tinha sido a pièce-de-resistence, e o Príncipe se fartara e chegara a extremos de glutonaria. Sentiram os fidalgos a falta de bons vinhos. As poucas garrafas de um aguado vinho branco foram distribuídas na mesa principal e nem o Príncipe se atrevera a experimentá-lo.

A um gesto do Príncipe, atendeu o ajudante-de-ordem.

— Vamos parar novamente ali, sob aquela árvore. Preciso descansar.

A ordem era breve, como, aliás, tinham sido as anteriores. Já pela quinta vez a caravana iria parar, a fim de que a nobre pessoa do Príncipe pudesse descansar. Paradas forçadas, a fim de que Sua Alteza pudesse aliviar-se. A moqueca fazia efeitos devastadores no organismo real bem como em todo o séqüito. As urgências de alívio eram necessárias à maioria dos acompanhantes, que aproveitavam aqueles momentos para procurarem as moitas.

As feições do Príncipe mostravam bem os resultados do extremo esforço.O rosto macilento, branco, o suor escorrendo abundantemente, descendo pelo pescoço, entrando pelas roupas justas. A cavalgada não era o mais recomendado para as pessoas sob os efeitos purgativos da comilança da noite anterior. Raios, quem me dera estar agora descansando com a Marquesa, nos seus braços macios.

As responsabilidades imperiais falam mais alto do que qualquer outra coisa. Tinha de atender ao chamado dos seus amigos, pois a efervescência política na corte era grande. A própria monarquia corria risco. A pressa no retorno ao Paço Imperial e às maquinações políticas não podiam ser retardadas nem mesmo pela paixão do Príncipe pela fogosa Marquesa. Urgia voltar ao Rio sem tardança.

Retomaram a marcha, agora já por caminhos mais suaves. Acabada a serra, o planalto se apresentava em toda sua beleza, as serras e os platôs desdobrando-se até o horizonte infinito. Podia ser visto, ao longe, o casario de São Paulo de Piratininga.

— Vamos passar pela propriedade de Dona Prudência. — A ordem veio direta do Príncipe, quando se encontravam a algumas léguas do córrego do Ipiranga.

O local onde o Príncipe desejava estacionar era uma tosca morada, rodeada de frondoso arvoredo, que servia de parada aos tropeiros e viajantes. Última parada para quem vinha do interior, rumo a São Paulo. A proprietária era Dona Prudência de Vilasboas, viúva do antigo comerciante de armas e munições Silvério Almeida de Vilasboas. Com a morte do marido, a viçosa viúva optara por manter apenas a própria estalagem às margens do córrego do Ipiranga.

Era por volta das duas horas quando a coluna real chegou à casa de Dona Prudência. Ordens foram dadas e todos desmontaram. A maioria ficou à vontade sob as árvores. Os escravos ajudavam seus senhores no manejo das montarias, levando-as a beber e permitindo-lhes pastar nos pastos próximos. A casa, por suas modestas dimensões, permitia apenas que o Príncipe e seus auxiliares imediatos se adentrassem.

O Príncipe se refrescou com uma bacia de água fresca, lavando rapidamente as mãos e o rosto. Dona Prudência, ao saber da pressa do ilustre visitante em chegar a S. Paulo, ordenou o preparo de um repasto ligeiro para o ele e seu séqüito.

Desejoso de descansar por pouco tempo, o Príncipe pediu para usar o quarto de Dona Prudência, que acedeu com satisfação, ansiosa de agradar o governante. Eis que, após alguns minutos, o Príncipe ressona, dormindo sob o enorme dossel do leito de Dona Prudência.

Todos usufruíam os momentos de descanso. Somente na cozinha havia atividade. Dona Prudência foi a primeira a perceber o tropel de dois cavaleiros, que chegavam vindos de S. Paulo: esbaforidos, suados, as montarias cansadas. Apearam e dirigiram-se sem titubear à senhora à porta.

— Somos mensageiros da corte e queremos ver imediatamente o Príncipe.

Eram realmente emissários vindos do Rio, com mensagens da esposa do Príncipe, do chefe do gabinete ministerial e com cartas régias vindas d´além-mar. Dona Prudência não titubeou nem por um momento em recebê-los e foi bater à porta do quarto onde repousava o destinatário das mensagens urgentes.

Interrompido em seu repouso, o Príncipe recebe de mau humor os mensageiros. Ali mesmo, no quarto, quebra os lacres e põe-se a ler as cartas. São de sua mulher, que dá conta das providências que ela e o influente ministro já haviam tomado. As cartas das Cortes de Lisboa exigiam a imediata viagem do Príncipe à metrópole. À medida que lia as mensagens, na presença de Dona Prudência, que permanecia ao seu lado, mais crescia o seu mau humor. Ao final, estava imprecando e maldizendo a todos os seus “inimigos”.

A figura era patética: as roupas amarfanhadas, cabelos desgrenhados, suado, combalido pelas inúmeras descargas viscerais, o Príncipe amassava as cartas e gritava contra as paredes.

Dona Prudência se assusta e sai correndo do quarto, rumo aos mensageiros. O Príncipe, ainda mais agitado, tenta chamar de volta a dona da estalagem. Chega até a porta, de onde, agitando as cartas na mão direita, acena para a mulher, gritando:

—Não se assuste, Dona Prudência, volte!

Mas a mulher já está entre os dois mensageiros, lá embaixo, perto do córrego do Ipiranga. A distância e o vento atrapalham e espalham os gritos do Príncipe.

—O Príncipe está maluco. Acudam, ele perdeu o juízo! — Dona Prudência avisa os mensageiros.

Da porta, o Príncipe continua gritando;

— Dona Prudência, volte. Dona Prudência, volte!

Agora, a tropa toda já está alerta com a gritaria do ilustre viajante. Alguns perguntam:

— Mas o que está Sua Alteza gritando?

Um dos mensageiros pensa que entende e responde:

— Parece que está gritando “independência ou morte”.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 13 de maio de 2001.

CONTO # 91 DA Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 26/03/2014
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