012-NA VENDA DE TOTÓ MIRANDA-Comerciante versus fiscal

Era um fiscal exigente. Como todo fiscal, farejava de longe uma falcatrua, uma sonegação, um deslize do contribuinte e jamais errava um golpe. Flagrava sempre o sonegador. Manhoso, cheio de dedos para preparar o laço. Um raio ao atingir a pessoa visada, fosse comerciante, industrial ou lavrador. Ninguém escapava à sua sanha de cobrador de impostos.

Sebastião Romão era o melhor na sua atividade: funcionário federal empenhado na fiscalização do Imposto de Consumo. Seu afã na verificação da aplicação do selo nas mercadorias era obsessivo. Queria ver o selo do Imposto de Consumo colado em tudo quanto fosse mercadoria negociada na região de sua atribuição: a cidade e o município de Girassol.

Sua predileção eram os botecos e pequenas casas comerciais na periferia da cidade. Chegava aos botecos na hora de maior movimento, quando o dono estava no maior aperto, atendendo a freguesia.

-- Comigo ninguém brinca, não senhor. Não tem o selo do Imposto na mercadoria, tá ferrado, multo mesmo, não me interessa se tem ou não dinheiro pra quitar a multa. Aviso que não tem essa de “eu não sabia”. Não selou, leva multa.

Onde terminava a cidade e começava a estrada estava o empório de Seu Totó Miranda. Comerciante esperto, bom no vender e melhor no comprar.

-- Cumpadre (chamava todo mundo de cumpadre), o lucro do comerciante está sempre numa compra bem feita.

Sendo seu estabelecimento na saída da cidade, era a primeira parada de quem chega do Espraiado, do Rio Clarinho, da Serra das Angolas, da Lagoa Preta e do Morro Vermelho. Todos os sitiantes e lavradores, vindos de suas roças e sítios daquelas bandas, paravam com prazer na venda do Totó Miranda.

Comprava praticamente toda a produção rural que por ali transitasse. Totó Miranda exercia seu comércio há mais de trinta anos. A cada ano aumentava sua freguesia , angariava mais clientes, tanto no balcão de venda como no armazém onde mais gostava de ficar, examinando mercadorias que chegavam, comprando, fazendo negócios à vista ou adquirindo safras futuras, mediante adiantamentos por conta das colheitas. Dois ou três caixeiros ficavam na loja, por conta de atender a freguesia nas vendas do varejo.

-- Seu Totó, óia essa partida de feijão tá uma beleza, bem granado, num tem pedra nem cisco.

-- Cumpadre, seu feijão num tá nem melhor nem pior do que o dos outros . O tempo este ano ajudou. A safra tá muito boa. Mas o preço é como lhe disse, 50 cruzeiros por saca, e tamos conversado.

-- 55 a saca, fechamos agora o negócio.

-- 52 e nem mais um centavo, cumpadre.

-- Tá bom, tá bom. Mas quero dinheiro de contado, aqui na mão.

-- Taqui, cumpadre, 520 pelos 10 sacos.

Dava gosto ver Seu Totó regateando com os produtores. Uma tarde, chegou o Argemiro da Donana com uma partida de rolos de fumo.

Negociar fumo era um verdadeiro ritual. Seu Totó corta um pedacinho de cada rolo, cheira e aperta os pedaços nos dedos. Fica com os dedos pretos de manusear as amostras. Depois, escolhe um dos toletes e, numa pachorra, palha bem macia entre os dedos, canivete afiado, faz o seu cigarrinho caprichado. Espalhado o fumo sobre a palha, enrola a palha, quebra a ponta do cigarro, amassando-a entre o polegar e o indicador. Cigarro na boca, acende com isqueiro, fecha os olhos, dá a primeira, a segunda e a terceira tragada. O vendedor e diversos assistentes estão atentos, um silêncio total. Só depois da terceira tragada, seu Totó abre os olhos:

-- Ainda tem que curar uns meses.

Ou:

-- Tá ressecado. Se não vender logo, vira macaia, só serve pra curar bicheira de gado.

Acabava que o negócio saía por um preço ou por outro, depois de muito regateio de ambas as partes.

Negociante esperto, chegava a ser ladino. Mantinha alguns amigos avisados, que lhe mandavam recado quando o Sebastião Romão rondava pelas proximidades de seu negócio. Assim, sempre tinha tempo de escamotear as mercadorias recém-adquiridas, ainda sem a legalização devida. Para tanto, usava uma garagem velha, um comprido e estreito barracão, com uma porta mal disfarçada. Ali, num compartimento escuro, guardava essas mercadorias.

Sebastião Romão desconfiava, mas jamais teve ensejo de entrar na garagem e verificar de perto o esconderijo de mercadorias de Seu Totó.

-- Esse Totó é um pirata, matreiro. Mas ainda vou pega-lo de jeito. Ah, se vou.

Um pirata contra um paladino do imposto . Viviam um jogo conhecido na cidade e com lances emocionantes. Seu Totó, o pirata, jamais foi flagrado pelo Romão, o paladino.

Chegou, finalmente, o dia em que os dois jogadores se defrontaram.

Tarde quente de dezembro. A venda, movimentadíssima. No armazém, chegaram de manhã e à tarde diversos fornecedores de mercadorias das fazendas e sítios. Seu Totó se esfalfava nas negociações de compra de mercadorias.

Romão intuiu, naquela tarde pegaria o Totó no flagrante. Telefonou para o ponto de carros de aluguel.

-- Calimério, aqui é Romão. Preciso que me faça uma corrida.

Cinco minutos depois, chega o Calimério com seu Chevrolet Combinam a corrida, Romão embarca e o carro parte.

Totó acabara de adquirir uma partida de queijo fresco, trazida pelo Juca Damasceno.

-- Tá bom, Juca, por 120 cruzeiros compro a queijama. Estende as peças aí nessa tábua, a fim de que eles escorram um pouco o soro. Tão muito frescos.

Sai do armazém em direção à loja.

Dez minutos depois, o carro encosta na frente da Loja. Romão desce e entra.

Totó, no fundo da loja, percebe a entrada de Romão. E, sem ser notado, pega não só o dinheiro para pagar os queijos, como também passa a mão na caixa de charutos onde guarda os selos do imposto, que Romão tão ciosamente fiscaliza.

-- Cadê o Totó ? Pergunta Romão ao primeiro caixeiro que vê.

-- Tá lá no armazém. Quer que vá chamá-lo?

-- Não, pode deixar. Eu mesmo vou lá.

Romão vibrava. Suava de emoção e ansiedade. Enfim, ia pegar o rato antes que ele fizesse qualquer movimento de fuga. Ou de sonegação. Passa pela loja, rumo aos fundos. Entra de supetão no armazém, onde Totó acabava de liquidar o negócio com Juca Damasceno.

-- Boa Tarde, seu Totó !

-- Tarde, cumpadre Romão.

-- Tarde movimentada.

-- É verdade. A freguesia da roça gosta de aproveitar o sábado para suas compras.

-- Ia passando por aí, resolvi também fazer umas compras.

Era um jogo de dois matreiros, cada qual fazendo o seu lance cuidadosamente, imaginando se o parceiro estava ou não blefando. Aparentemente, Totó mantinha o bom humor. Parecia estar senhor da situação.

Romão fremia de prazer antecipado, sabia que por ali iria encontrar alguma mercadoria, alguma coisa ilegal. Suas narinas tremiam, estava prestes a ter um orgasmo fiscal.

Viu a prateleira com os queijos recém-chegados. Tão frescos, o soro ainda escorria pelas bandas da tábua.

-- Queijama bonita, seu Totó. Fresquinhos, feitos ainda hoje.

-- É verdade. Tá uma beleza. E é coisa boa, feitos pelo Juca Damasceno, chegaram agora mesmo.

Romão vibrou. É agora. Vou flagrar esse Totó, vou lhe dar uma multa tão grande que ele vai levar anos pra pagar.

-- Quanto tá valendo?

-- Cinco cruzeiros cada um.

-- E pra levar toda prateleira, quanto o senhor me faz?

Romão armou o golpe direitinho. Compraria todos os queijos, nenhum estava com o selo, então lavrava o auto, e multava Totó em cada um dos queijos, mais de 30 peças. Uma multa e tanto !

-- Quer levar todos os queijos, cumpadre Romão ?

-- Todos, se me fizer um preço bom.

-- Por 150 o cumpadre pode limpar a prateleira.

-- Negócio feito.

Romão saca do bolso a carteira e dela tira 15 notas de 10 cruzeiros. Estende para Totó, que hesita um momento em pegar.

-- Ah, antes que me esqueça. Como a queijama ainda tá muito fresca, não dá pra pregar o selo do imposto. Aqui estão os selos, o senhor só pode levar os queijos acompanhados dos selos. Não se esqueça, hein, cumpadre!

Os olhos brilhantes de Totó fixaram no olhar de surpresa de Romão. Dois lutadores em acirrada disputa, e Totó desferia um golpe fatal em Romão.

Negócio feito, dinheiro pra cá, queijos e selos pra lá. Tonto de surpresa e de raiva, Romão dirige-se à porta da loja, onde Calimério espera.

-- Calimério, vem me ajudar a botar esses queijos aí dentro do carro. Com muito cuidado, que os queijos tão desmanchando de tão frescos.

Nem se despediu. Na tarde quente, partiu Romão, derrotado, sob os olhares da freguesia, o sorriso impávido de Totó Miranda. A poeira levantada pelo carro qual cortina final do round de uma luta infindável de lances pitorescos .

ANTONIO ROQUE GOBBO – Conto # 12 da Série Milistórias – 15.02.2000

Publicado em “A Loucura do Cristal”, volume 1 da Coleção Milistórias

ARGOS

Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte

15 de fevereiro de 2000

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 26/02/2014
Reeditado em 08/09/2014
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