Asilados

Conto

De início disseram-me que era provisório, que não ficaria aqui por muito tempo. Mas nada disso se confirmou, uma vez que amanhã completará três anos que estou aqui. Todos me tratam bem, não posso reclamar. Os médicos, as enfermeiras, as cozinheiras, as moças da limpeza, todos nos dispensam bom tratamento.

O meu quarto é o último do corredor direito do pavilhão B desde que cheguei aqui. Neste pavilhão estão os idosos cuja saúde, em contrapartida da dos moradores do pavilhão A, pode ser considerada boa. Ninguém aqui sofre de enfermidade grave. Todos ainda possuem os membros inteiros, nenhum amputado. Talvez o Braga, em função das complicações do diabetes, terá que em breve desfazer-se do dedo mínimo do pé direito, dado que desde que ali surgiu uma ferida não houve jeito de curá-la. Mas convenhamos! Não há motivos para tantas lamentações, como fez espalhafatosamente o Braga. Mais vale um dedo do que uma perna, é certo! Isso pode nos confirmar o Antonio, recolhido agora no pavilhão A, que fora obrigado a amputar as duas pernas também em função do diabetes.

Juntando os dois pavilhões, onde estão os quartos dos asilados, a cozinha, o refeitório, a sala de convivência e as dependências administrativas do asilo, o prédio tem uma área total de 100 metros quadrados. Outrora este mesmo prédio fora um famoso clube da cidade. Aqui se reuniam os pequeno-burgueses para festejar o carnaval, para apresentar as filhas em bailes de debutantes, para acompanhar colações de grau de bacharéis e para participar das mais variadas festas possíveis. Muitos dos que estão aqui hoje recolhidos em função da idade e das enfermidades, ironicamente, outrora esbanjaram juventude e beleza neste mesmo prédio. Por estes dias, após o café, narrava-me o Almeida as suas peripécias amorosas de outrora nos cantos deste prédio que antes abrigara um vasto salão. Eu não cheguei a frequentá-lo, pois a este tempo morava no sul.

- Era aqui mesmo Rafael, era neste salão que eu conquistava as mais belas moças da cidade. Nenhuma escapava-me, todas queriam dançar comigo. Naquele tempo tinha eu um físico de atleta, tinha ombros largos, pernas rijas, braços fortes...Sem contar que eu era bonito. Estes olhos verdes que hoje estão desbotados e corroídos pela catarata antes eram de um brilho sem tamanho. Era por intermédio deles que eu prodigalizava minha juventude. Ah, minhas mãos! Que mãos tinha eu meu caro. Eram alvas e sedosas, nada que se compare a estas duas coisas horríveis que carrego hoje em meus braços. Naquela época, neste mesmo prédio, era só eu mirar alguma bela mulher com os meus olhos vivos e pegar-lhe nas mãos com as minhas que eu tinha namoro garantido. Ah! se ao menos houvesse a possibilidade de voltar no tempo...

O Almeida, ainda que represente involuntariamente a figura de um velho apático, não raro sempre termina suas reminiscências com os olhos orvalhados, e naquele dia não foi diferente.

Há aqui no asilo indivíduos de todos os tipos. Uns possuem história de vida singular, outros nem tanto. Alguns se destacaram na profissão escolhida, outros nem profissão tiveram. Alguns ganharam muito dinheiro, fato que os possibilita hoje optar pelos cueiros mais caros. Em contrapartida, há aqueles que, não fosse o salário mínimo da aposentadoria, sérias privações teriam.

Entre nós há uma senhora que na década de setenta, eleita miss Santa Catarina por este tempo, ganhou muito dinheiro fazendo trabalhos como modelo no Brasil e no exterior. Segundo o sr. Schutel, com quem costumo encontrar-me esporadicamente nos exames médicos, ela chegou até mesmo a ter um caso com um dos integrantes da família real de Mônaco. Hoje a miserável está aí, dia após dia, padecendo enferma sobre uma cama no pavilhão A.

Junto de nós está também o Emanuel, eminente pensador de outrora. Durante muito tempo ele fora professor universitário. Com conhecimentos profundos em filosofia ocidental e oriental escreveu uma porção de livros. Um deles, com um sincretismo de ideias estóicas e epicuristas, cujo título é Preceitos para o bem viver e o morrer, rendeu-lhe grande prestígio nos meios acadêmicos. Hoje, porém, velho e desatinado, nada mais sabe sobre a arte de viver bem. Passa o dia inteiro no jardim dos fundos do asilo falando sozinho e fumando. Um antigo aluno seu, uma vez que Emanuel não possui mias parentes vivos, quis levá-lo daqui no ano passado, mas ele não consentiu.

Não posso deixar de falar do meu companheiro de quarto, o Isaías, cuja vida carrega em si a tragédia da existência. Sujeito afável e honesto, mas que sabe ser bruto quando lhe convém, é natural do estado de Pernambuco. A primeira vez que esteve em Santa Catarina foi na década de setenta, pois para cá veio a fim de trabalhar como soldador na construção da ponte Colombo Salles. Naquele estado, naquela ocasião, deixou os dois filhos e a mulher, com quem havia se casado a pouco tempo. Muito custou-lhe partir, mas não havia jeito, somente o sul lhe conferiria, conforme pensava, alguma possibilidade de ganhar algum dinheiro com o qual pudesse mandar, mais tarde, os filhos para a faculdade. Ele não realizara o sonho de ser engenheiro naval, mas o Otávio ou Afonso, com certeza seria um, e de destaque.

A primeira estadia do Isaías em Santa Catarina, conforme se sabe, durou exatamente dois anos. Tão logo foi possível ele voltou para Pernambuco para ver a esposa e os filhos. Durante este tempo comunicou-se com os seus apenas por cartas. A esposa escrevia-lhe sempre afirmando que os filhos iam bem na escola e de saúde. No tocante a ela, dizia-lhe que, por meio de uma caligrafia impecável, exceto a imensa saudade que sentia dele, nada a atormentava.

Fizeram-lhe grande festa no momento do seu regresso. Os garotos não se continham em entusiasmo diante dos presentes que o pai havia lhes comprado no sul. A esposa, mais bela do que antes, pareceu-lhe, quase sufocou-o com abraços e beijos.

Mas nem tudo foi apenas festa, abraços e beijos no retorno de Isaías para casa. Alertado por um amigo próximo, na ocasião em que o visitara, que em sua ausência, mais de uma vez, fora visto em sua casa o tal Júlio Alves, famoso em sua cidade por assediar mulheres casadas, acabou descobrindo um impensável adultério envolvendo sua mulher e o patife galinha. Isaías, no extremo da cólera, sem procurar outras alternativas para a resolução do caso, matou os amantes. Em decorrência disso cumpriu uma longa pena de quinze anos em um presídio pernambucano.

Ao ver-se em liberdade após estes anos todos em reclusão, velho já, sem emprego, com a alcunha de ex-presidiário, sem o contato com os filhos, pois estes não lhe desculpavam o assassinato da mãe, Isaías voltou para Santa Catarina. Aqui acabou caindo na mendicidade. A pouco tempo que ele fora tirado das ruas e aqui no asilo instalado.

Atualmente corre o boato entre os asilados que o velho Isaías e a dona Alice Junkes, uma senhora com aproximadamente setenta e três verões, começaram uma relação que, por acreditá-la fora de questão nessa idade, não chamo de namoro, mas que os demais o fazem sem cerimônias.

A dona Alice é uma senhora de extrema meiguice e bondade, mas que possui os seus vícios também. Morando no asilo a aproximadamente cinco anos, dois no pavilhão A, pois aqui chegara quase deteriorada por um câncer, e três no pavilhão B, ela fora aqui deixada pelos filhos que não tinham tempo, nem disposição para cuidar dela. Quando moça, diante de uma desesperadora viuvez, dona Alice viu-se forçada a cuidar sozinha dos três filhos. Deu-lhes tudo que estava ao seu alcance. Fez de um Advogado, outro Administrador de empresas e a filha mais nova Pedagoga. Com que sacrifício ela custeou os estudos dos filhos mediante o seu trabalho em uma facção de costura! Porém, isso pouco lhes significou, na primeira oportunidade que tiveram eles encerraram a mãe neste asilo.

***

Estes sãos alguns dos tipos que encontram-se hoje aqui asilados como eu. Cada um deles possui a sua própria história, com suas devidas peculiaridades. No tocante ao desenvolvimento de suas respectivas existências, poucas semelhanças. Todavia, o final de suas existências é de um todo igual: irão todos findar os seus dias encerrado neste asilo.

Quando a mim, por hora não lhes narrei minha história de vida, mas quem sabe, antes que o destino me leve para o pavilhão A e lá eu termine os meus dias eu ainda tenha a oportunidade de apresentá-la a vocês.

Rafael Oliveira, Florianópolis 2014.