AS FOLIAS.

As folias surgiam sempre nos finais de ano, iluminando as tardes de dezembro, pouco antes do natal. Anunciando ao povo pobre da favela que seu Rei menino nascera em Belém, numa manjedoura igualmente pobre, no lugar mais humilde de toda a Judeia. Eram enormes, alegres, encorpadas, longas, devotadas. Todo o povo saia aos portões de suas casas, de seus barracos, de seus terreiros enfeitados para vê-las passar em longas procissões. Os casais de palhaços, desgarrados do cortejo, vinham à sua frente, saracoteando em genial descompasso, em pulos e cambalhotas, entre versos divertidos e graciosas misuras, par a a alegria de todo povo, sempre desejoso de suas boas novas. A criançada corria empolgada. A divertida Catirina, mulher palhaça, metida naquele cortejo cômico avançado, era a perfeita materialização da alegria. Se exibiam em deboches, em brincadeiras, em gritos, em confusões, em pandenguices. Só eram interrompidos pelo apito dos mestres foliões, evocando total respeito dos tais palhaços, dos membros de suas folias e do resto incontável de povo que ás acompanhava em mais uma breve visita aos interiores das casas humildes, com seus enormes quintais em festa:

"...meu sinhô dono da casa

oh! vige Maria

cá estou em seu terreiro

oh! vige Maria.

Pra chegar em tua porta

oh! vige Maria

peço licença primeiro.

Oh! vige Maria... "

Os mais pobres eram os que mais colaboravam com as folias, lhe ofertando o que havia de melhor em seus lares simples, em suas despensas parcas. Havia sempre uma broa de fubá e milho, com um café coado recente. Um legume cozido com refresco de fruta da época. Um angu mole, com couve picada, uma cachacinha gostosa pra rebater a friagem. Os que não tinham nada ofertavam seu melhor tesouro: uma lágrima sincera, de um olhar puro, respeitosamente emocionado, pelo orgulho da visita da folia que chegara abençoando seu lar, sua vida, sua mesa, sua família.

"...bençoada foi a mão

oh! vige Maria

que panhô nossa bandeira

oh! vige Maria.

Deus lhe dê bom casamento

oh! vige Maria

se ela fô moça solteira.

Oh! vige Maria... "

As mocinhas sorriam, alegres com os votos de bons casamentos entoados pelos mestres foliões. Os moradores mais antigos eram sempre os mais emocionados. Todos os anos recebiam as folias com carinho e devoção. Depois ficavam do lado de fora de seus enormes quintais, vendo-as se despedirem, sumindo em deslizante caracol de vento, levando sua gente alegre, seu batuque, suas cordas, s ua cantoria, sua boa nova, seus bons presságios, sua fé, em meio a cortina de poeira levantada das ruas pobres de barro:

"...meu sinhô me da licença

que já vou me retirar

vamo para muito longe

temos muito que andar...

se despede da bandeira

que a bandeira vai embora

temos de fazer entrega

do menino lá na glória...

despedi de uma bandeira

dói no coração da gente

já vai o menino Deus

e os três magos do oriente."

E lá se iam as folias em novas chegadas e velhas despedidas. Pelas ruas alegres, levantando a poeira vermelha do barro, carregando sua multidão de gente contente, no bojo de fé do seu cortejo, levando suas cantorias empolgadas pelas estradas longas e distantes, até se tornarem um filete moribundo de som quase inaudível. Depois de um certo tempo, já não se ouvia mais as suas belas cantorias. Seguiam faceiras, à alegrar outros longínquos quintais. As ruas fi cavam mudas a pós a passagem das folias. Um silêncio respeitoso impregnava todo o ar. A criançada órfã de seus palhaços, de sua Catirina, entrava calada á tomar banho. Os idosos ainda limpavam o leito seco de seus olhos, onde há pouco corriam grossos veios de lágrimas. A noite caia milagrosamente serena. O vento soprava respeitoso, sem ser notado. Seu Manuel, meu avô, erguia a viola pelo bojo, dona Leonidia, minha avó, entendia de guardá-la junto ás peneiras já prontas no armário antigo. O velho tio Euclídio imaginava a folia entregando agora o menino Jesus de volta aos braços da virgem Maria, pelas mãos calorosas dos três reis magos, enquanto sua companheira Ercília fazia um pouco mais de café para servir a molecada junto com as sobras de broa de milho. O velho Antoninho, meu pai, tomava seu último gole de cachaça, nessa noite de interrupção precoce. Dona Carmelita, minha mãe, já temperava a água morna de seu banho. Hoje não se irritaria com as brejeirices do marido, aquelas horas, já tranquilo, dentro d e casa. A brisa soprava fria. Dona Arina, minha doce tia, levantara-se num repente, com o ronco forte de Natalício seu marido, fechara as janelas, cobrira o dorso nu do meu pequeno primo Marco Aurélio, que buscava aconchego na quentura sonolenta dos outros três irmãos. Todos dormiam, cobertos pelo manto de paz, presente do menino Jesus, da Virgem Maria e dos três reis magos, deixados ao povo pobre da favela, em retribuição á sua recepção calorosa de carinho e gentileza, durante a passagem de seu cortejo em folia.