Alma de gato
Meu avô, Zé Pinto, foi carreiro por muitos anos, um
caboclo matuto e muito espirituoso. Colocava apelido em
todo mundo e ficava muito bravo se alguém ousasse chamá-lo
de outra coisa que não fosse pelo nome de batismo.
Vai entender a cabeça das pessoas! Se quisessem tirá-lo do sério, era só
tratá-lo por Mazzaropi ou Arroz Doce. Aí o velho virava uma
arara. Vou citar alguns apelidos que ele colocou em seus pupilos:
Zé gaiola, Capa égua, Tipiranga, Dindica, Mio de grilo, Bileu,
Caguinho, Mandioca, Garça, 100 Reis, 200 Reis, Olho de pomba
choca, Setenta broa, Tilingo, Maçareco, Gato, Alma, Alma de gato,
Moranguinha, Curió, Bioró, Zé da pedra, Gamelão, Sucuri, Tio
Horácio, Capixaba, Zé bambu, Rola, Taíco, Didico, Ligorinho etc.
Alguns, na verdade, foram rebatizados e levaram o apelido
para o túmulo, e quanto pior achassem a alcunha, mais esta pegava
no infeliz. É de praxe em minha querida cidade de Pimenta, e
como creio que em muitas outras pequenas cidades, anunciar no
alto-falante da igreja o falecimento de um cidadão para colocar a
comunidade a par do fúnebre acontecimento. Em muitos casos,
para sabermos de quem se trata, o anunciante vê-se na obrigação
de falar o apelido do falecido.
Pode acreditar, caro leitor, em algumas lápides do cemitério
consta o apelido do ilustre hóspede na lapinha. Fico imaginando
a chegada da alma de alguns finados ao céu, o dito cujo falando
seu nome, e São Pedro respondendo não saber de quem se trata.
Quando ele fala o apelido, o Santo coça a cabeça e, com ar
de espanto, diz que estava esperando por ele. Então confere o
atestado de óbito e dá-lhe as boas-vindas, chamando-o não pelo
nome de pia, mas pelo apelido.
Há muito tempo, trabalhava junto com o Sr. Zé um rapaz,
que como todos os outros que o rodeavam, acabou ganhando
um apelido. Meu avô começou a implicar com o dito cujo que
chiava igual a um gato. O coitado era asmático e veio a falecer
com tuberculose muitos anos depois. A primeira vez que foi
chamado de Gato pelo patrão, o sujeito ficou com muita raiva,
e foi o que faltava para sacramentar o batismo de fogo.
Logo todos ao seu redor começaram a chamá-lo de Gato.
Chateado com o apelido que a cada dia ficava mais arraigado,
ele propôs ao patrão trabalhar de graça uma semana se ele não o
chamasse mais de Gato.
O meu avô muito esperto, e um tanto quanto explorador da
miséria alheia, concordou na hora, dizendo que nunca mais o
chamaria pelo nome daquele bichinho.
E a semana foi passando e meu avô teve que tomar o maior
cuidado para não perder os dias de serviço, e o tratou pelo nome de
batismo o tempo todo. Na sexta-feira à tarde, o Sr. Zé tratando-o
pelo nome foi chamá-lo para irem embora e perguntou quanto lhe
devia. O operário respondeu que ele não lhe devia nada, pois o
patrão tinha cumprido o trato de não mais usar o terrível apelido.
Meu avô deu uma risada e disse então:
— Vamos embora, “Alma”.
O rapaz ficou surpreendentemente irado e disse que o trato
não estava sendo cumprido, que queria receber os dias trabalhados
e não iria mais trabalhar para ele.
O patrão, com dor na barriga de tanto rir, disse-lhe que não
tinha descumprido o trato, pois Alma era outro apelido e não o
antigo que fizera parte do trato.
Neste momento o rapaz falou:
— O Sr. tá mangando de mim? Eu sei muito bem o que essa
“Alma” é do gato. Agora ficou foi pior. Imagina os outros me
chamando de “Alma de gato”.
O Sr. Zé falou que as outras pessoas poderiam até lhe tratar
assim, mas que ele iria cumprir o combinado e ia chamá-lo só
de “Alma”. E completou:
— Ou vai querer trabalhar mais uma semana de graça?
O desconsolado camarada nunca mais voltou ao serviço, mas
o apelido daquele dia em diante ganhou nome e sobrenome “Alma
de gato”.
Mas as peças que meu avô pregava em quem lhe surgisse pela
frente, afeto ou desafeto, não importava, talvez tenha origem em
uma brincadeira que a vida lhe pregou na mais tenra infância.
Tal fato é o que explico agora!
Meu avô não recebeu um nome de pia. Ele não tinha sido
batizado quando bebê e muito menos registrado em cartório.
Fora criado sem os pais, pela sua avó materna, Marcelina. Ficava
atrás dela como um pintinho. Então todos o chamavam de Pinto
da Marcelina.
Sua avó ficava brava e falava:
— O menino se chama Zé!
Muitos anos mais tarde, quando ele foi se casar, precisou
por isso ser registrado. O escrivão lhe perguntou como era seu
nome, ele disse:
— Põe aí Zé.
O escrivão do cartório então lhe perguntou qual era o sobrenome.
O que foi respondido prontamente:
— Uai, todo mundo me chama de Zé Pinto da Marcelina.
Então o sobrenome só pode ser Pinto.
Acho que é por isso que ele nunca chamava ninguém pelo
nome e alcunhava a todos a torto e a direito. E como o seu apelido
virou o nome próprio, ele não admitia ninguém o trocar.
O seu nome já era um apelido recebido quando era muito pequeno
e andava atrás da sua avó pelas ruas de Pimenta, tentando,
por meio da mendicância, conseguir o seu sustento e o de seu neto.
Ou seja, o Pinto começou nele dali por diante. Não era,
portanto, o sobrenome de seus pais. E como é regra, os seus
descendentes ganharam Pinto ao serem registrados.
Alguns não gostaram do Pinto e o tiraram quando se casaram.
Meu avô, que não tinha Pinto, fez questão de adotá-lo, e os que
nasceram com Pinto, castraram-se!
Moral da história: eu acabei capão, meus pais não passaram
o sobrenome Pinto para mim!
Kennedy Pimenta